Nesses tempos de intolerância, me lembrei de uma crônica que publiquei no meu último livro, Histórias ao redor (Vitória: Cousa, 2020). Estou sempre aprendendo sobre esse e outros assuntos com minhas filhas, e a crônica fala do dia em que elas me ensinaram mais alguma coisa sobre o respeito às diferenças.
DESCOBERTA NUM DIA DE SOL E FRIO
Flávio Carneiro
Segunda-feira, de manhã. Entro no clube com o carro, levando no banco de trás uma exímia nadadora de sete anos de idade e uma bela bailarina, de três.
Deixo Maria na piscina e vou com Luísa para o balé. Assisto a meia hora de aula e volto à piscina. Pego Maria, de roupão e tudo, passo pela sala de balé – que fica ao lado do banheiro infantil –, resgato Luísa da chuva de beijos da professora e levo minhas filhas para o banho.
Não há um minuto a perder, o tempo corre como a lebre da fábula (eu faço o papel da tartaruga, torcendo para que o final da minha história seja o mesmo da outra).
Maria sai do chuveiro e, diante do espelho, começa a vestir o uniforme da escola.
“Papai, eu sou o quê?”
Luísa responde, rindo da pergunta:
“Você é a Maria.”
“Não perguntei quem eu sou, Lu, perguntei o que eu sou?”
Luísa pensa um pouco, antes de responder:
“Você é minha irmã, ué.”
Maria se vira para mim, impaciente:
“Papai, será que você pode responder? Só você?”
“Claro, filha. O que você quer saber?”
“Eu sou magra ou gorda?”, ela pergunta, voltando a se olhar no espelho.
Nem tenho tempo de pensar na resposta.
“Sou feia ou bonita?”
Luísa, sentada no meu colo enquanto ajeito seu cabelo, responde:
“Você é linda, Maria.”
Pura delicadeza, a Luísa.
“Eu sou branca, papai?”
“Hein?”
“Sou branca igual você? Ou negra, igual mamãe?”
“Mamãe é marrom, Maria.”
“Deixa o papai responder, Lu, por favor!”
“Eu acho...”
“Sou muito alta, não sou, papai? Se bem que não, sou bem baixinha. Nunca vou ser uma menina alta, sabia?”, Maria continua.
Luísa olha para mim, levantando as sobrancelhas e abrindo os braços, como se dissesse: e agora?
“Mas talvez eu não seja tão baixinha assim. Tem menina mais baixa do que eu na minha turma.”
“Sabia que eu já alcanço a maçanega?”, Luísa diz, orgulhosa.
“É maçaneta, Lu”, Maria corrige, rindo. E logo depois:
“Papai, você me acha inteligente ou burra?”
Inteligente, inteligentíssima, respondo às pressas, enquanto me levanto com Luísa no colo. Maria me ajuda com a tralha toda, de natação e balé. Confiro se não estou esquecendo nada e saio com elas até o carro.
Almoçamos e seguimos direto para a escola. No caminho, um silêncio incomum no banco de trás. Do alto da sua cadeirinha, Luísa olha compenetrada a paisagem lá fora. No que estará pensando?, me pergunto, em silêncio.
Já estamos chegando. Na próxima esquina vou deixar minhas pequenas aos cuidados das tias, na companhia das amigas de escola, em mais uma tarde de sol e frio em Teresópolis, combinação que adoro e costuma espantar meus fantasmas e pequenas sombras, mesmo que eles insistam em ficar em torno.
“Papai, já descobri!”, Maria diz, interrompendo meu breve devaneio.
“Descobriu o quê, filha?”
“Descobri o que eu sou, de verdade!”
“É mesmo? E o que você é de verdade, além de minha flor?”
Pelo retrovisor, vejo que ela sorri. Sorriso discreto, de canto de lábios.
E responde:
“Sou uma menina mista.”
Escritor, roteirista e professor de literatura na UERJ. Escreveu 16 livros – entre romances, coletâneas de contos e crônicas, ensaios – e dois roteiros para cinema. É autor da “Trilogia do Rio de Janeiro”, composta pelos romances “O Campeonato”, “A Confissão” e “A Ilha”. Seu livro mais recente é um policial: “Um romance perigoso”. O editor deste blog considera “Passe de Letra”, de autoria de Flávio, um clássico sobre a literatura do futebol. Parte de sua obra foi publicada em outros países, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Portugal, Alemanha, Colômbia e México. Site do Flávio
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