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A Escrivaninha de Noel

por Carlos Didier*


Noel Rosa, compositor popular carioca, faleceu em 4 de maio de 1937, aos 26 anos de idade. Boêmio, rascunhou versos em mesas de botequins e cabarés, onde viesse a inspiração. Muitas são as testemunhas. O que poucos presenciaram foram suas horas de concentração e recolhimento, quando burilava jatos anotados de madrugada até chegarem à forma definitiva. Isto acontecia no silêncio de sua casa, em Vila Isabel, debruçado sobre a escrivaninha, na sala de jantar, bem ao lado do quarto onde nasceu e morreu.


A idéia de um poeta que tudo compôs de improviso serve melhor ao mito que à verdade. Apesar de brilhante repentista, o superior em suas obras foi fruto de intensa reflexão. Ouvia opiniões. Entre as quais a de sua mãe, D. Martha, professora. Muito foi para o lixo. Só assim se explica o nível maior de sua arte. O autor arrisca; depois, julga. Noel soube renunciar ao medíocre, ao efêmero.


A última foto, publicada em “A Noite”, surpreendeu-o de pijama, o violão ao colo e o olhar fixo no chão. Ao fundo, a escrivaninha. Dentro, pastas, envelopes, livros, desenhos, fotografias, originais de letras, um dicionário de rimas e uma luminária de metal com cabo flexível. Ali estão os “Meus pensamentos”, as operetas e as “Conversas de esquina” escritas para o rádio. As peças principais são o caderno com todas as suas canções em ordem alfabética e a coleção de recortes batizada como “Este Álbum”.


Uma revela o esforço em preservar a obra; outra, a preocupação com a história do artista. Raras, ambas, em compositores na época. Noel Rosa preparou-se para a morte.

Oito meses antes, em 9 de setembro, Noel Rosa montou “Este álbum”. Numerou, com lápis vermelho, as duzentas páginas e dedicou cada seção a um ano. São artigos de imprensa, programas, catálogos e anúncios. Logo no início, o “Jornal de Modinhas”, de novembro de 1929, traz “Cumprindo a promessa”. À caneta, Noel corrigiu um verso e completou: “Feito em 1925”. Esta é a música que desejava reconhecida como a primeira, composta com quatorze ou quinze anos. Antes dos recortes, a observação: “1929 -1937”. De próprio punho, começava a construir sua posteridade.


Quando ausente, a escrivaninha permanecia fechada. Acompanhava-o desde os tempos de estudante. É um móvel pequeno, com 109 cm de altura, 70 de largura e 34 na maior profundidade. Fora a tampa, o mais funcionava como arquivo, quase um depósito, inclusive a gaveta. Em sua desordem se entendia. Quem entrasse na sala de jantar, vindo da rua, o veria de costas, junto ao ângulo da parede, sentado defronte dela. Um dia, Lindaura, sua esposa, abriu-a e deu com um retrato, em tamanho grande, de Julinha, “bonita mulher”, um dos muitos amores do poeta. Tornou a fechar, com raiva. Outra vez, à procura de dinheiro, foi flagrada pelo marido. Como resposta, um samba: “Você vai se quiser/ Pois a mulher não se deve obrigar a trabalhar/ Mas, não vá dizer depois/ Que você não tem vestido/ Que o jantar não dá pra dois”. Aquela escrivaninha era um lugar somente seu.


Há muito, poetas publicados e músicos populares brasileiros namoravam. Castro Alves teve poemas transformados em canções, no século passado; Hermes Fontes fez os versos de “Luar de Paquetá”, nos anos 20; são antigas as contribuições de homens de letra ao teatro musicado. Na maior parte, modinhas, valsas, músicas bem comportadas, freqüentadoras de saraus e salões. Desde 1917, um novo gênero chegara ao sucesso: o samba. Carregado de elementos africanos, composto por gente humilde, em geral negros e mulatos, o samba sofri preconceitos. Sobretudo os criados nos morros. Os poetas mantiveram-se à distância.


No Ponto Cem Réis, próximo à residência de Noel, ficavam os botequins mais famosos do bairro. Desde garoto, teve negros entre os amigos. A descoberta do samba só fez aproximá-los ainda mais. Tornou-se parceiro de Canuto e Puruca, do Salgueiro; de Ismael Silva e Bide, do Estácio; de Cartola e Gradim, da Mangueira. Aprendeu os segredos com os próprios criadores. Em contrapartida, trouxe para o samba recursos poéticos, imagens, fluência, crônica, realismo, humor, psicologia, temas existenciais. Para só falar da letra.


Entrevista ao “Diário de Notícias” , em 4 de janeiro de 1936, o mostra dono de uma visão crítica aguda: “A boemia, cada vez mais encantadora, continua enchendo de beleza , povoando de ritmos novos, esta cidade maravilhosa, onde a poesia ergueu seu templo. A única diferença é esta: em vez do soneto, o samba.” Mais adiante: “O samba evoluiu. A rudimentar voz do morro transformou-se, aos poucos, numa autêntica expressão artística, produto exclusivo de nossa sensibilidade. A poesia espontânea do nosso povo levou a melhor contra o feitiço do academismo a que intelectuais do Brasil viveram durante muitos anos ingloriamente escravizados.


Poetas autênticos sentiram em tempo a verdade. E o samba tomou conta de alguns deles. Influíram sobre o público, mas foram, também, por ele influenciados. Da ação recíproca dessas duas tendências, resultou a elevação do samba. Não duvido que Bilac, se fosse vivo, tomasse o bonde do samba.” São trechos que denunciam a consciência e a genealogia poética de Noel Rosa. O meio boêmio, em fins do século passado, dotou de humor os versos cariocas. Tanto Olavo Bilac quanto Noel Rosa foram boêmios.


O primeiro, quando secretário de governo do Rio de Janeiro, despachava em versos jocosos. Nomeou Luís Murat para a tesouraria com as seguintes palavras: “ Niterói, 10 de janeiro, / Saúde e fraternidade. / Demita-se o tesoureiro / Por falta de assiduidade. / E lavre-se a portaria, / O decreto ou o alvará, / Que entregue a Tesouraria / Ao senhor Luís Murat !”. Quanto à licença de uma certa professora: “Se Dona Ana Maldonado / For uma bela mulher, / Tenha o dobro do ordenado / E do tempo que requer. / Mas se for velha e metida, / O que se chama um canhão, / Seja logo demitida / Sem maior contemplação !”. A filiação entre “Cordiais saudações”, samba epistolar de Noel Rosa, e o espírito de Bilac e contemporâneos é clara: “Estimo que este mal traçado samba, / No estilo rude da intimidade, / Vá te encontrar gozando saúde / Na mais completa felicidade. / Em vão te procurei / Notícias tuas não encontrei / Eu hoje sinto saudades / Daqueles 10 mil réis que eu te emprestei.” Ao final: “Espero que notes bem / Estou agora sem um vintém. / Podendo, manda-me algum... / Rio, 7 de setembro de 31 ! ”. O entusiasmo pelos versos satíricos, em princípios deste século, levou Emílio de Menezes para a Academia Brasileira de Letras. Os sambas humorísticos, marca registrada de Noel, têm esta origem.


O olhar do poeta voltou-se muitas vezes para os deserdados da sorte. Observava o que muitos preferiam ignorar. Lima Barreto e João do Rio foram dos poucos a escrever sobre os desprotegidos. Noel seguiu esta trilha, em versos. Na pungência de “João Ninguém”: “ João Ninguém / Que não é velho nem moço, / Come bastante no almoço / Pra se esquecer do jantar”. No humor triste de “O Orvalho vem caindo”, onde imortalizou, numa imagem, os que dormem ao relento: “Meu cortinado é o vasto céu de anil / E o meu despertador é o guarda-civil ”.




Em “Meus pensamentos”, de janeiro de 1930: “Dizem que o burro fica admirado diante de um palácio. Será que se admira de ver a desigualdade entre os homens ? Ou a fragilidade das construções ? ".


A psicologia em “Pra que mentir ": “Pra que mentir, Se tu ainda não tens / Esse dom de saber iludir ? / Pra quê ? Pra que mentir, / Se não há necessidade de me trair ? / Pra que mentir, / Se tu ainda não tens / A malícia de toda a mulher ? / Pra que mentir, / Se eu sei que gostas de outro / Que te diz que não te quer?".


A crônica em “Conversa de botequim” transformado em escritório cujo empregado é o garçom: “Telefone ao menos uma vez / Para 34-4333 / E ordene ao seu Osório / Que me mande um guarda-chuva / Aqui pro nosso escritório”.


A temática existencial em “Último desejo”: “Se alguma pessoa amiga / Pedir que você lhe diga / Se você me quer ou não, / Diga que você me adora, / Que você lamenta e chora / A nossa separação. / Às pessoas que eu detesto, / Diga sempre que eu não presto, / Que o meu lar é o botequim, / Que eu arruinei sua vida, / Que eu não mereço a comida / Que você pagou pra mim".


Duzentas e cinqüenta composições, em oito anos. Millôr Fernandes fala em “pelo menos 50 indiscutíveis obras-primas”. Como compreender esta façanha sem o trabalho de elaborar, cortar, substituir ? Curioso fascínio exerce o improviso sobre o público. Devido, quem sabe, à idéia de intervenção divina, de eleição, de unção. Arte é coisa humana, resultado de lampejo e disciplina. Muitos afirmaram presenciar a criação de “Conversa de botequim” e “Último desejo”. Todos viram uma anotação, talvez o jato inicial. Não assistiram obras-primas nascerem de um impulso. A escrivaninha silente é testemunha.


Parte do material guardado em seus escaninhos e gaveta sumiu no dia da morte. Nestor Moreira, repórter de “A Noite”, recolheu fotos e desenhos para ilustrar o artigo de 11 de maio: “O Fim triste de um samba bonito”. O principal permaneceu.

Antes do fim do ano, D. Martha decidiu dar destino ao conteúdo da escrivaninha. Mulher de personalidade forte, sem consultar a viúva, entregou tudo ao zelo de Marília Baptista, compositora, intérprete e amiga de Noel. Esta, por trabalhar sob a direção do maestro húngaro Arnold Gluckmann, na Rádio Clube do Brasil, ofereceu-lhe os originais de “A Noiva do Condutor”, uma opereta. Desta forma, Noel ganhou um parceiro europeu. Quando Almirante constituiu seu arquivo, Henrique Baptista, irmão da cantora, cedeu-lhe o material. Marília guardou consigo, apenas, o dicionário de rimas.


Do caderno de letras restou uma cópia manuscrita. Almirante emprestou o original a um músico sem nunca receber de volta. Fim semelhante era imaginado para “Este álbum”, a coleção de recortes: desaparecera. Contudo, no início dos anos sessenta, uma mulher bateu à porta de Hélio Rosa, irmão de Noel, em Niterói. Vinha devolver o álbum que o próprio Hélio emprestara. Ele não se recordava nem do empréstimo nem da mulher. O documento retornava à família.


Os últimos pertences de Noel conservados por D. Martha foram o violão e a escrivaninha. Um ano antes de falecer, chamou Lindaura e entregou o instrumento. Dias depois, ele dissolvia-se nas mãos da viúva: cupim. Melhor destino teve o móvel. Eduardo Nelson, sobrinho de Martha, mandou restaurá-lo respeitando os detalhes de época. Aquela escrivaninha, quase centenária, encontra-se melhor do que quando era confidente e espectadora de Noel Rosa.



Carlos Didier (Caola) e o conjunto “Coisas Nossas” interpretando trechos inéditos de “Com que Roupa?” de Noel Rosa, programa gravado em 1984


Obs.: Texto publicado no Jornal da Tarde, Caderno de Sábado em 03/05/1997, p.1



*Carlos Didier é historiador da música popular brasileira e da cidade do Rio de Janeiro. Engenheiro e músico é autor de “Noel Rosa, uma biografia” (em parceria com João Máximo); de “Orestes Barbosa, cronista e poeta” (prêmio Jabuti de biografias) e “Nássara passado a limpo” (prêmio Jabuti de biografias), além de várias outras publicações. Foi um dos fundadores do grupo musical “Coisas Nossas” que fez história interpretando a obra de Noel Rosa.

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