Por Flávio Carneiro
Escrevi esse conto para minha mãe, Dona Tina, que hoje completa 80 anos. Guerreira, demais da conta. Mas é também uma homenagem a todas as mães, em especial Angélica, que todos os dias divide comigo duas felicidades chamadas Luísa e Maria. O amor, sempre.
CANTIGA
Para minha mãe
Você já tentou de tudo mas eles não dormem. Deu leite morno com açúcar queimado (sempre os acalma), desfiou todo o seu repertório de canções de ninar, à beira da cama, o quarto na penumbra. Nada funcionou.
Foi um dia longo, a casa dá trabalho, e o almoço, depois é levar as crianças na escola e na volta sentar à máquina de costura, entre peças de cetim, linha, seda, algodão, rodeada de franjas e rendas, botões, bordados, tentando dar conta das encomendas. Agora tudo que você quer é dormir, mas sua menina, a caçula, e seus dois meninos, tão pequenos ainda, continuam acesos.
Você pede ajuda ao marido, o contador de histórias da casa. Ele também trabalhou o dia todo, mas você precisa dormir, amanhã acorda cedo, é muita costura para entregar, você explica.
Ele prontamente troca de lugar com você, e com seu jeito manso encara aqueles olhinhos arregalados, esperando as histórias do pai, que vai misturando casos que viveu, menino na roça, com outros que ouviu contar, e os que inventa na hora, até o sono chegar como quem não quer nada, devagarinho.
Você, sentada na cadeira, ouve as histórias também, como se fosse filha, e sem se dar conta seu corpo relaxa, pernas estendidas, pés descalços, as mãos uma sobre a outra no colo, a cabeça pendendo de lado. E nem repara que a voz do marido vai sumindo, sumindo, a história interrompida porque o contador também se deixou levar, meu Deus, que sono bom!
Assim seguiriam vocês até de manhã, não fosse a reclamação dos pequenos, a sacudirem o pai pedindo a continuação da história do dinossauro de óculos. Dinossauro de óculos?!, o pai repete, acordando de repente, sem saber direito onde está, em que viagem no tempo, e no susto você acorda também.
Então você desiste. Leva os filhos para a sala e espalha no chão os brinquedos. Na cozinha passa um café, forte. Volta e encara sua máquina de costura, a velha Singer, fiel companheira. Não vai esperar amanhecer, melhor começar logo, não pode atrasar o serviço.
Ainda sonolenta, você troca o carretel, desce com a linha atravessando furos intermináveis, este de baixo para cima, aquele de cima para baixo, levando a linha a passear pela máquina até a agulha, que aguarda paciente a parceira de ofício.
Máquina preparada, cada coisa em seu lugar, você começa o trabalho. Nem precisa olhar para o alpendre, sabe que o marido está lá, vendo as estrelas, cada noite diferentes da noite anterior. Também não precisa virar o rosto para ver as crianças, brincando ao lado. Você sabe muito bem onde estão os seus.
E sabe também como manejar cada engrenagem, onde travar a bobina, conhece cada regulador da sua Singer, os pés conduzindo a harmonia do pedal, a mão direita acertando o ponto da costura, aqui o franzido, ali mais solta, o pano tomando corpo, forma, a máquina cantando, Singer.
No ritmo da melodia, você deixa o coração vagar pela cidadezinha da sua infância, a casa com pomar (maior que o mundo), o riacho, os trilhos do trem, a lembrança dos que já se foram – uma lágrima ensaia cair sobre o tecido mas você a contém –, no embalo da costura você vaga pelo futuro, o que será da sua menina, dos seus meninos? Que histórias vão ouvir antes de dormir, quem vai contar?
Nessa hora, você sabe que lá fora o marido dormiu na cadeira de balanço. E sabe que os filhos finalmente fecharam os olhos, sonhando sabe lá que sonhos, nas almofadas espalhadas pelo chão. Você vai levá-los para a cama daqui a pouco, agora não, agora você continua tocando seu instrumento, sem nunca sair do tom, tirando no silêncio da noite, nota por nota, sua cantiga de adormecer andorinhas.
* Publicado no Jornal O Popular (Goiânia) em 10 de maio 2018
Escritor, roteirista e professor de literatura na UERJ. Escreveu 16 livros – entre romances, coletâneas de contos e crônicas, ensaios – e dois roteiros para cinema. É autor da “Trilogia do Rio de Janeiro”, composta pelos romances “O Campeonato”, “A Confissão” e “A Ilha”. Seu livro mais recente é um policial: “Um romance perigoso”. O editor deste blog considera “Passe de Letra”, de autoria de Flávio, um clássico sobre a literatura do futebol. Parte de sua obra foi publicada em outros países, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Portugal, Alemanha, Colômbia e México. Site do Flávio
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