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CURAR A ECONOMIA, PROTEGER AS PESSOAS, SALVAR A DEMOCRACIA

Atualizado: 18 de abr. de 2021



Por Marcelo Weishaupt Proni


Intelectuais de diversas áreas do conhecimento estão tentando entender os impactos provocados pela pandemia em várias esferas de interesse: saúde, economia, política, trabalho, educação, comportamento, diplomacia, direito, entre outras. Muitos dizem que essa crise global (sem precedentes na História) representa um divisor de águas e que o mundo não voltará a ser como antes. Outros especulam sobre as ameaças à ordem social estabelecida e sobre as possibilidades de mudança abertas pelo esgotamento do neoliberalismo.


Questões variadas estão sendo debatidas em diferentes fóruns para esclarecer o que está em jogo. Por exemplo: É plausível antever o surgimento de uma ordem econômica internacional antiliberal? É correto dizer que a crise aumenta a proporção de trabalhos precários e potencializa a polarização social? Estão emergindo novas formas de luta social, que podem revitalizar o movimento sindical ou pressionar os governos a adotarem uma estratégia de desenvolvimento sustentável? Há evidências de que o fracasso das políticas neoliberais no enfrentamento da crise pode conduzir a um redirecionamento da intervenção do Estado, em especial no combate ao desemprego e na garantia de um nível básico de renda?


Este pequeno artigo não tem a pretensão de responder essas pertinentes questões. O objetivo é mais modesto: apresentar projeções e expectativas divergentes sobre o rumo das mudanças no sistema econômico e no mercado de trabalho para estimular uma reflexão em torno de três proposições: 1) uma regulação eficaz dos mercados financeiros é fundamental para curar a economia (não basta o governo injetar dinheiro); 2) tanto um sistema público de proteção social como políticas de geração de empregos e garantia de renda são essenciais para proteger as pessoas; 3) para enfrentar essa crise global (econômica, social e ambiental) é necessário salvar a democracia.


Depressão econômica e vulnerabilidade dos trabalhadores


Em 11 de março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente que a Covid-19 havia se transformado em pandemia, já havia registro de casos da doença em 114 países e de aproximadamente 4,3 mil mortes causadas pelo novo coronavírus. Dois meses depois, o número de óbitos confirmados no mundo se aproximava de 300 mil mortes. Nesse período, a crise econômica e social também se propagou rapidamente.


No campo econômico, as projeções de tendências são bastante preocupantes. De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia mundial provavelmente sofrerá uma contração de 3,0% em 2020. A recessão será mais forte nas economias mais avançadas (queda de 6,1%), induzida pela redução do PIB nos EUA (5,9%), na Zona do Euro (7,5%) e no Japão (5,2%). Por sua vez, nas economias em desenvolvimento a recessão será mais moderada (queda de 1,0%). O PIB do conjunto das economias emergentes da Ásia deve crescer 1,0% graças à recuperação esperada na China e na Índia. As economias da América Latina devem ter uma contração de 5,2% (considerando uma queda de 5,3% do PIB no Brasil e de 6,6% no México). Certamente, um impacto global maior do que aquele observado em 2009, após a eclosão da crise financeira internacional em 2008. Mas, o FMI não projeta uma recessão prolongada (acredita que haverá crescimento expressivo – ou pelo menos recuperação – em quase todas as economias nacionais em 2021).


Entretanto, há projeções mais pessimistas, que apontam para uma depressão profunda e prolongada. O economista norte-americano Nouriel Roubini elenca dez motivos que fragilizam a economia mundial – entre os quais a limitada capacidade de reação dos governos, a maior inadimplência de empresas e famílias, as falências em massa e o avanço da “desglobalização” – e inviabilizam uma retomada do dinamismo econômico. Por isso, ele esboça um cenário desesperador de estagnação econômica e tormentas sociais recorrentes na próxima década.



"Devemos lembrar que são pessoas, não números", destacou o diretor-geral da OMS. Tedros Ghebreyesus

Como há muitas incertezas, as estimativas são muito imprecisas. Por exemplo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) projeta que o comércio cairá abruptamente em todas as regiões do mundo e em todos os setores da economia. Num cenário otimista, o volume do comércio global de mercadorias pode cair 13% em 2020. Mas, se a pandemia não for controlada e os governos não conseguirem coordenar as respostas políticas, o declínio pode ser de 32%.


No campo social, as previsões sobre a extensão dos impactos também variam bastante. O Banco Mundial projeta um aumento da população submetida a condições de extrema pobreza em 2020, estimando um acréscimo entre 40 milhões e 60 milhões de pessoas vivendo com menos de US$ 1,90 por dia (elevando o total para quase 700 milhões de pessoas). Por outro lado, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) alerta que o choque causado pela pandemia pode atingir proporção muito maior da população mundial. Atualmente, mais de 2 bilhões de pessoas (incluindo crianças e jovens) vivem na pobreza multidimensional e não têm proteção social – ou seja, mais de 25% da população são bastante vulneráveis à depressão econômica, que acarreta expressiva queda na renda do trabalho.


A Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem mapeado os impactos devastadores da pandemia no mercado de trabalho, em escala mundial. Antes da pandemia, havia cerca de 188 milhões de pessoas desempregadas no mundo. Em meados de março, a OIT projetava um aumento de 25 milhões no número de desempregados (em comparação, a crise financeira internacional de 2008 provocou um aumento de 22 milhões).


Mas, em pouco tempo, ficou evidente que a crise teria um impacto muito maior no trabalho e na renda das pessoas. Por exemplo, a taxa de desemprego nos EUA saltou de 3,5% em fevereiro para 14,7% em abril. Nesse período, houve mais de 33 milhões de solicitações de seguro-desemprego. Outros milhões de trabalhadores saíram do mercado de trabalho para a inatividade. Por outro lado, na maioria dos países em desenvolvimento, onde a informalidade é muito elevada e o seguro-desemprego é inexistente ou cobre apenas uma pequena parcela dos trabalhadores, os impactos da crise não se traduziram no aumento do desemprego e sim na elevação da taxa de subutilização da força de trabalho (principalmente devido à redução indesejada da jornada de trabalho) e na queda dos rendimentos mensais.


O relatório mais recente da OIT foi divulgado no final de abril. Em resumo, as estimativas apontam o seguinte quadro para o segundo trimestre de 2020: a) as medidas de paralisação total ou parcial da atividade econômica afetam potencialmente 2,2 bilhões de trabalhadores (68% da força de trabalho global); b) cerca de 1,6 bilhão de trabalhadores na economia informal (47% da força de trabalho global) correm o risco imediato de terem seus meios de subsistência destruídos; c) o número total de horas trabalhadas pelos ocupados tende a ter redução de 10,5% (o que equivale a 305 milhões de empregos com jornada de 48 horas semanais); d) como a renda mensal dos trabalhadores informais caiu fortemente (60% na média global), a taxa de pobreza relativa (proporção de trabalhadores com renda mensal abaixo de 50% da renda média) dos informais deve ter um aumento de 34 pontos percentuais (variando de 21 p.p. em países de renda média alta até 56 p.p. em economias de renda média baixa); e) 389 milhões de trabalhadores por conta própria e 47 milhões de microempresários enfrentam alto risco de falência (principalmente no comércio varejista, no setor industrial, em serviços de hospedagem e em serviços de alimentação). Certamente, a proporção de trabalhadores vulneráveis é bem menor nas economias de alta renda (15%) e bem elevada nas economias de renda média baixa (80%) ou de renda baixa (68%). Essa assimetria também vale para os pequenos empreendimentos. Além disso, os impactos no mercado de trabalho podem ser mais ou menos intensos, em cada país, de acordo com o modo de enfrentamento da Covid-19 e a eficácia das ações adotadas para solucionar os problemas econômicos.


Considerando o quadro de incertezas, é compreensível que existam opiniões diferentes sobre as consequências da crise no mercado de tr

abalho e sobre as políticas mais eficazes para recuperar o crescimento da economia ou para proteger os trabalhadores. E há interpretações divergentes sobre a possibilidade de retornar à “normalidade” da governança anterior ou de implementar novas normas de conduta e novos mecanismos de regulação econômica.


Curar a economia


Uma das consequências da pandemia é a ampliação do debate sobre o abandono dos dogmas neoliberais, sobre a possibilidade de uma transformação profunda da ordem econômica mundial e sobre a restauração do protagonismo do Estado. Ainda que seja improvável uma mudança completa e imediata, alguns debatedores afirmam que se abre uma oportunidade para reconfigurar o regime de acumulação, providenciar uma nova matriz institucional para a construção de sociedades mais fraternas, e adotar uma agenda de políticas públicas focada no desenvolvimento sustentável. Mas, outros observadores têm argumentado que a crise exacerba tendências que já estavam colocadas antes da pandemia e que a prioridade, neste momento, é tentar resistir ao aumento das desigualdades, ao esvaziamento dos direitos do trabalho, à erosão da proteção social, ao enfraquecimento das instituições democráticas e à destruição dos ecossistemas.


O economista francês Thomas Piketty tem afirmado que, diante da gravidade da crise que está abalando a economia mundial, as ideologias dominantes estão sendo contestadas e desafiadas a dar respostas eficazes para a superação dos problemas econômicos que desorganizam o modo de vida nas sociedades contemporâneas e ameaçam instituições democráticas. Ele argumenta que o colapso causado pela Covid-19 coloca em questão as concepções existentes sobre a política econômica e a política social, permitindo que novas visões político-ideológicas possam surgir. Os governos nacionais e as autoridades públicas são pressionados a regular as forças de mercado e a assumir novas estratégias de proteção social. Mas, nada garante que uma nova agenda de políticas públicas vai se consolidar e que as sociedades mais desenvolvidas serão capazes de agir firmemente para enfrentar o aumento da desigualdade e o aquecimento global. A mudança real, diz ele, tem de vir da organização de base de movimentos sociais e políticos, que sejam capazes de obter avanços nos direitos sociais, promover justiça fiscal e ampliar a proteção ambiental.


Outra análise instigante é feita pela economista italiana Mariana Mazzucato. Ela afirma que o capitalismo está enfrentando pelo menos três grandes crises: uma crise de saúde pública induzida pela pandemia, uma crise econômica com consequências ainda desconhecidas para a estabilidade financeira, e uma crise climática que já começa a manifestar sinais inequívocos. O fechamento das fronteiras e o distanciamento social evidenciaram as fragilidades das economias capitalistas ocidentais. Ela sugere que a preocupação dos governos centrais em evitar uma depressão profunda e prolongada pode ser uma oportunidade de consertar as distorções do sistema econômico provocadas pela financeirização. É preciso restaurar a capacidade do Estado de articular o enfrentamento das questões cruciais. É hora de direcionar o crescimento econômico para uma trajetória mais inclusiva e sustentável. Se nada mudar, ela conclui, não haverá chance contra a terceira grande crise – um planeta cada vez mais inabitável – e as sucessivas convulsões que acontecerão nas próximas décadas.


O economista norte-americano Joseph Stiglitz alerta que o impacto econômico da pandemia (e de seus efeitos na saúde pública) nas economias em desenvolvimento ou emergentes será devastador. Além da retração do comércio mundial (e, em especial, a queda no preço das commodities) e dos fluxos de investimentos globais, essas nações terão dificuldade para rolar sua dívida soberana. Os líderes do G20 se comprometeram a minimizar os danos econômicos e sociais da pandemia, restaurar o crescimento global, manter a estabilidade do mercado e fortalecer a “resiliência” do sistema. Para isso, o FMI precisa conceder empréstimos emergenciais para as economias abaladas, e os pagamentos da dívida externa devem ser suspensos. Stiglitz afirma que a comunidade internacional precisa colocar em andamento um plano de socorro para evitar uma onda de moratórias e aponta a necessidade de reestruturação da dívida soberana dos países em desenvolvimento. Ou seja, uma (improvável) ação coordenada de solidariedade internacional é condição necessária para conter a propagação da Covid-19, mas também para revitalizar a economia mundial e estabilizar os mercados globalizados.


Por sua vez, o economista turco Dani Rodrik pondera que a crise atual provavelmente não será um divisor de águas na política e na economia globais. Ele sugere que, em vez de colocar o mundo numa trajetória significativamente diferente, é provável que algumas tendências bem evidentes sejam intensificadas. O neoliberalismo continuará morrendo lentamente. A hiperglobalização permanecerá sendo desmontada, à medida que os governos recuperam seu campo de atuação. China e EUA continuarão em rota de colisão. Os autocratas populistas se tornarão ainda mais autoritários. A disputa pelo poder entre oligarcas, populistas autoritários e internacionalistas liberais se intensificará, enquanto a esquerda continuará lutando para criar um programa que agrade à maioria dos eleitores. Não há motivos, na sua visão, para acreditar que a pandemia possa alterar radicalmente o desdobramento de tais processos históricos.


Em complemento, o economista da UFRJ José Luís Fiori refuta a ideia de que um mundo novo poderia nascer desta experiência traumática, uma vez que é muito pequena a possibilidade de que o capitalismo seja domesticado nesta conjuntura histórica, e nada garante que depois da crise os governos de países centrais manterão uma política econômica heterodoxa ou que estabelecerão uma renda básica universal. Ele prevê que, apesar da devastação econômica provocada pela epidemia, o mais provável é que não ocorram grandes rupturas geopolíticas dentro do sistema mundial. Em vez disso, pode acelerar a velocidade de mudanças que já estavam em curso e que seguirão se aprofundando: o aumento da desigualdade e da polarização social, o recrudescimento da virada nacionalista (antiglobalização?) e a intensificação de conflitos armados (principalmente se Trump for reeleito nos EUA). Ele argumenta, ainda, que não parece haver uma força material capaz de induzir um acordo internacional efetivo ou um plano nacional de reconstrução coletiva, depois de controlada a pandemia.


O economista da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo esclarece que a economia mundial já vinha apresentando uma série de problemas antes da pandemia, principalmente por causa da instabilidade provocada pela financeirização, e que agora o sistema econômico parece estar “moribundo”. Apenas uma forte intervenção governamental (como ocorreu na grande depressão dos anos 1930) pode salvar os mercados neste momento. Contudo, não há indícios de que haverá uma profunda transformação estrutural. Ele explica que não se deve acreditar no determinismo das leis de funcionamento do sistema. É necessário analisar as consequências da ação política. Embora o funcionamento do sistema econômico esteja gerando sua autodissolução e a capacidade humana de suportar o estresse gerado esteja chegando no limite, se as forças sociais que estão sendo devastadas pelo império da concorrência não se mobilizarem, é mais provável que a pandemia provoque um estado de putrefação e estagnação. Resta a esperança de que as atuais lideranças políticas sejam capazes de mudar a trajetória dos acontecimentos, que vai em direção ao desastre.


O ceticismo que emana da análise objetiva das relações de poder econômico e da correlação de forças políticas, note-se, contrasta com a esperança em uma ação política transformadora, direcionada para curar a economia, proteger as pessoas, redistribuir a riqueza, diminuir as assimetrias entre as nações e preservar o meio ambiente. E parece que alguns observadores tentam conciliar essas duas posições ou assumir uma posição intermediária no debate.


Sobre esse ponto, é pertinente um comentário de Rodrik. Para ele, a diversidade de interpretações sobre os desdobramentos da crise decorre da fragilização das instituições e da grande incerteza sobre o futuro, que geram um “viés de confirmação”: o desastre da Covid-19 é visto como afirmação de uma visão de mundo particular. Alguns percebem sinais incipientes de uma futura ordem econômica e política que desejam há muito tempo. Mas, quem quer apenas aprimorar a governança global argumenta que normas internacionais mais exigentes no campo da saúde pública são a principal condição para reduzir os custos da pandemia. Aqueles que defendem maior participação do governo na oferta de bens e serviços públicos têm muitas razões para pensar que a crise justifica sua crença. Por outro lado, os que refutam a intervenção do governo e denunciam sua incompetência em várias áreas também pensam que suas opiniões estão sendo confirmadas. E assim por diante. Por isso, persiste a divergência a respeito das terapias receitadas para curar a economia.


Proteger os trabalhadores



O contraste entre a análise pessimista das tendências atuais e a expectativa otimista de novas possibilidades de ação também fica evidente em opiniões recentes sobre as mudanças em curso no mundo do trabalho, que oscilam entre 1) reivindicar melhores condições de trabalho (privilegiando parcela das categorias profissionais) e a adoção de programas de garantia de renda (por causa da ameaça de desemprego tecnológico), ou 2) propor medidas emergenciais para conter o aumento da subutilização da força de trabalho (num contexto de depressão econômica) e atenuar os efeitos da elevada desproteção dos trabalhadores (causada pela erosão de direitos trabalhistas e previdenciários).


O sociólogo italiano Domenico De Masi está entre aqueles que enxergam na crise atual uma oportunidade para repensar as relações de trabalho no âmbito das (grandes) empresas e para melhorar a qualidade de vida dos empregados por meio do “home office” (para os cargos em que isso é possível). Ele argumenta que essa modalidade de trabalho à distância permite: a) aos trabalhadores, uma preciosa economia de tempo e dinheiro, além de diminuir o estresse e a alienação; b) às empresas, reduzir microconflitos pessoais e despesas na manutenção do local de trabalho e (possivelmente) aumentar a eficiência e a produtividade do trabalho; e c) à coletividade, reduzir a poluição do ar nas cidades, os congestionamentos no trânsito e despesas de manutenção de ruas e avenidas. Mas, ele reconhece que tal oportunidade é apenas um passo em direção à imprescindível mudança no modo dominante de organização do trabalho nas sociedades contemporâneas.


Por sua vez, o ex-senador brasileiro Eduardo Suplicy considera que o programa emergencial e transitório de garantia de uma renda mínima para os trabalhadores informais afetados pela crise econômica pode ser visto como um passo importante para a conscientização da sociedade sobre a necessidade e as vantagens desse tipo de política assistencial. Há muitos anos, ele defende um programa federal de renda básica de cidadania – sem condicionalidades e para todos os residentes no País – que deve ser visto como um direito universal imprescindível para dar dignidade às pessoas. Reforçando esse discurso, convém mencionar que o enfrentamento da crise social decorrente do coronavírus tem estimulado, na Europa, o debate sobre a viabilidade financeira desse tipo de política de transferência de renda e tem possibilitado a experimentação de esquemas incondicionais de garantia de uma renda básica, ampliando o alcance do sistema público de proteção social.


Por outro lado, há aqueles que ressaltam os prejuízos decorrentes da crise e são céticos quanto às melhorias especuladas. É o caso do geógrafo britânico David Harvey. Ele diz que há um mito conveniente de que as doenças infecciosas não reconhecem classe social ou outras barreiras sociais, uma vez que os impactos econômicos e sociais são filtrados por meio de discriminações evidentes em toda parte. A maioria dos trabalhadores não tem a opção de trabalhar em casa nem pode se dar ao luxo de ficar em quarentena, mesmo em países desenvolvidos como os EUA, e tem medo de adoecer e perder o emprego (e ficar desamparada). Além disso, a força de trabalho ocupada em atividades essenciais está mais exposta ao contágio e, em sua maioria, é sobreexplorada. São características que exigem dos governos medidas de proteção. Mas, embora seja um crítico contundente do capitalismo (e defenda a necessidade de uma nova governança mundial com a finalidade de gerir a transição para uma economia de crescimento zero), ele não demonstra ter a expectativa de que o enfrentamento da pandemia permita reduzir o caráter espoliativo da acumulação de capital, ou provoque uma melhoria nas condições de trabalho.


O sociólogo da Unicamp Ricardo Antunes explica que a classe trabalhadora está fragmentada e agora é submetida a uma situação dramática em razão da simbiose entre o caráter destrutivo do neoliberalismo e o impacto letal da pandemia. O processo de precarização do trabalho (cujas causas derivam da financeirização da riqueza, da reestruturação produtiva fundada em intensificação da exploração dos trabalhadores, e do ataque sistemático contra a organização sindical e os direitos do trabalho) parece ganhar ainda mais força diante da crise econômica provocada pela pandemia. Se nada for feito para conter os impactos da crise na saúde pública sobre a economia, os elos mais frágeis serão os mais prejudicados. Mas, ele pondera que nos períodos de colapso da ordem social, quando tudo que é sólido parece desmanchar no ar, abre-se a possibilidade de reinventar instituições econômicas, políticas e sociais e de reestruturar o mundo do trabalho. Para isso, neste momento de maior debilidade da classe trabalhadora, é preciso produzir a consciência de que os movimentos sociais podem se unir para reivindicar uma nova agenda de políticas, e é preciso que os sindicatos lutem por medidas permanentes de proteção para o conjunto dos trabalhadores (incluindo os trabalhadores digitais, os informais, os intermitentes, os autônomos “empreendedores” e os pequenos empregadores).


Belluzzo frisa que o quadro geral do mercado de trabalho é bastante preocupante, tanto nos EUA como na Europa, mais ainda no Brasil. Ele argumenta que a crise econômica atual não pode ser superada sem a proteção do emprego e a manutenção do consumo das famílias. Mas, o modo como a questão tem sido tratada em vários países não conduz à recuperação da demanda e não permite combater o aumento das desigualdades e o empobrecimento das classes médias. Em todo caso, diz ele, diante da gravidade da crise, talvez se abra a perspectiva de um encaminhamento diferente dessa questão – por exemplo, retomando-se a discussão sobre a legislação trabalhista, a negociação coletiva e a previdência social.


Piketty também enfatiza os impactos negativos da crise atual na vida dos trabalhadores. Ele afirma que a pandemia torna mais visível a brutal desigualdade social. As pessoas não são afetadas de modo igual pelos problemas econômicos, como o desemprego e a perda de renda. Aquelas que não têm poupança, que estão em posição muito precária no mercado de trabalho e que não têm moradia própria, sem dúvida, são as mais vulneráveis. Mas, ele lembra que há diferenças nacionais expressivas em termos de vulnerabilidade social. Por exemplo, em geral, o seguro-desemprego na Europa é mais generoso do que nos EUA (considerando a taxa de reposição salarial e a duração do benefício), enquanto nos países latino-americanos uma grande parcela da força de trabalho não tem direito ao seguro-desemprego. Para reduzir a vulnerabilidade, ele sugere que é preciso pensar em um tipo de recuperação econômica diferente do que ocorreu após a crise financeira de 2008. E continua dizendo que se abre uma oportunidade para adotar um modelo de crescimento socialmente mais equitativo e ambientalmente mais sustentável.


Para legitimar o novo modelo, é necessária uma mudança cultural que torne inaceitáveis os atuais níveis elevados de desigualdade (e de poluição). E, para implantar o novo modelo, é necessário vencer as forças que se opõem à adoção de políticas que melhorem a distribuição de renda, aumentem da participação dos salários na renda nacional e empoderem os movimentos sociais e os sindicatos (e o movimento ambientalista).


A abordagem da OIT é distinta: expressa a convicção de que a economia precisa voltar à “normalidade”, porque o crescimento do PIB é condição para reduzir o desemprego, elevar gradualmente os salários e melhorar as condições de trabalho. Ela defende a adoção de medidas emergenciais (específicas e flexíveis) para ajudar trabalhadores e empresas, em particular as direcionadas para a economia informal e para micro e pequenas empresas. Em complemento, propõe que sejam adotadas medidas para revitalizar a economia que contribuam para a criação de empregos e que sejam fortalecidos programas governamentais destinados à proteção dos empregados. Também enfatiza que sejam respeitadas as normas internacionais do trabalho e insiste na agenda do “trabalho decente”. Aponta a necessidade de uma coordenação internacional para oferecer pacotes de estímulo econômico para países pobres, e reitera que medidas de alívio da dívida externa (para reequilibrar o balanço de pagamentos) também são cruciais para tornar a recuperação abrangente, eficaz e persistente.



Desempregados formam uma longa fila à procura de empregos, em Nova Iguaçu. Foto: Marcos de Paula / Agência O Globo

Note-se que a OIT busca uma saída para a crise sem questionar diretamente suas causas mais profundas. Não coloca em pauta a possibilidade de superação do neoliberalismo e do atual modelo de globalização econômica, não discute o problema da crescente desigualdade produzida nos mercados nacionais de trabalho e não aponta a necessidade de recriar o Estado de bem-estar social. Sequer denuncia o enfraquecimento das instituições que regulam as relações de trabalho. As preocupações expressas no relatório são mais imediatas. Contudo, a OIT enfatiza a importância das políticas públicas para a recuperação da atividade econômica e para efetivar um patamar básico de direitos do trabalho. Suas recomendações pressupõem o abandono do ideário neoliberal e trazem implícita uma explicação sobre o motivo da vulnerabilidade dos trabalhadores ser menor em alguns países do que em outros.


É possível constatar que a discussão sobre os impactos da pandemia no mundo do trabalho contrapõe visões situadas em distintos planos de análise. Um olhar microeconômico não pode ser confirmado nem negado por um olhar macroeconômico. A luta contra a precarização crônica das relações de trabalho provocada pelo neoliberalismo não pode ser confundida com o combate aos problemas imediatos causados pela crise econômica e a adoção de medidas emergenciais destinadas a trabalhadores vulneráveis. Este debate (que certamente não se restringe aos poucos pontos de vista aqui apresentados) expressa visões de mundo e grupos de interesses, e ocorre em distintos campos de disputa: uma coisa é a disputa no interior do Estado (envolvendo membros do governo federal e do congresso nacional) relativa às políticas que devem ser realizadas para recuperar a economia e proteger os trabalhadores; outra coisa é a disputa ideológica sobre o papel do Estado na economia ou sobre a possibilidade de reorganização da sociedade por meio da emancipação dos trabalhadores. Por isso, o ceticismo em relação a uma profunda mudança estrutural e institucional (que supostamente poderia ser consequência da crise atual) não pode servir como justificativa para um discurso conformista ou para o imobilismo diante de problemas imediatos da população trabalhadora. Por outro lado, o compromisso intelectual com a emancipação social não pode ser motivo para deixar de reconhecer a contribuição de estudos bem-intencionados que tentam assumir uma posição neutra no que se refere à luta de classes.


Salvar a democracia


O sociólogo português Boaventura Sousa Santos argumenta que a pandemia não pode ser interpretada como uma crise passageira, que interrompe momentaneamente uma situação de normalidade. Desde que o neoliberalismo se impôs como a versão dominante na condução política dos governos e a lógica da financeirização assumiu o comando da economia, o mundo tem vivido em “permanente estado de crise” (o que é um paradoxo). A concorrência exacerbada pela globalização é usada para justificar a degradação dos salários, enquanto a instabilidade financeira recorrente e o aumento da dívida pública são utilizados para justificar cortes nas políticas sociais (saúde, educação, previdência social). O discurso neoliberal busca legitimar a escandalosa concentração de riqueza e impedir que se tomem medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe ecológica. Por isso, a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise crônica.


Ademais, diz ele, a pandemia faz cair por terra a ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros. Ou seja, sem uma democracia deliberativa, as alternativas oferecidas pelo sistema político para crises estruturais podem ser desastrosas.





O linguista e filósofo norte-americano Noam Chomsky esclarece que o maior problema do planeta, hoje, não é a pandemia. As duas principais ameaças conhecidas na atualidade são a ameaça crescente de uma guerra nuclear e a ameaça do aquecimento global, que está se tornando mais grave a cada ano. O risco iminente de destruição quase total pela contaminação radioativa e a contagem regressiva para uma catástrofe ambiental devastadora são incomparavelmente mais graves do que a pandemia causada pelo novo coronavírus, mesmo que não sejam tão perturbadoras para a vida cotidiana – por enquanto. Mas, Chomsky acrescenta uma terceira ameaça: o enfraquecimento da democracia. Para ele, o funcionamento da democracia oferece a única esperança de superar as duas ameaças de destruição da civilização humana.


Nos últimos anos, Chomsky tem se dedicado a estudar o que muitos chamam de “crise da democracia” em diferentes regiões do mundo, provocada pelo movimento internacional de governos de extrema direita reacionários e ultranacionalistas. Mas os governos não são as únicas entidades que contam nesse tabuleiro. A mobilização das pessoas, ele diz, pode fazer a diferença. Portanto, é necessário proteger as democracias em funcionamento, aprimorá-las, aproveitar as oportunidades que elas oferecem para um ativismo político engajado nessas causas. Houve progressos significativos no passado movidos pela ação política, e só uma ampla mobilização, em escala global, poderá mudar a trajetória atual. Nesse sentido, é preciso impedir que o enfrentamento da Covid-19 fortaleça o autoritarismo e que as democracias autênticas sejam esmagadas.


Como já foi dito, em épocas de crise há muitas incertezas. E diferentes trajetórias futuras são possíveis. Muitos governos de nações abaladas pela pandemia foram obrigados a abandonar o discurso da austeridade fiscal. Contudo, não parecem interessados em mudar suas prioridades e redirecionar o gasto público para aumentar os investimentos na área social (em especial, saúde e educação). E resistem a aumentar impostos e tornar a tributação mais progressiva. Só haverá uma mudança de rota se houver uma alteração na correlação de forças, uma mobilização de lideranças políticas e uma forte pressão de movimentos sociais sobre os respectivos governos.


O filósofo francês Pierre Dardot e o sociólogo francês Christian Laval afirmam que é equivocado confundir a mudança provisória na condução da política econômica e a adoção de medidas emergenciais para a proteção das pessoas, inclusive na área do emprego e dos salários, com o fim do neoliberalismo. Eles alertam que há o perigo de que os imensos gastos realizados para “salvar a economia” sejam novamente apresentados como uma conta que deve ser paga pelos trabalhadores e pelos contribuintes (inclusive os de baixa renda). Além disso, dizem que é preciso delimitar as prerrogativas do Estado soberano no combate à Covid-19. Isto é, é preciso desfazer a confusão entre a defesa dos serviços públicos e a defesa da soberania do Estado exercida contra direitos humanos.


Em suma, é pouco provável que, após controlada a pandemia, governos neoliberais ou conservadores se comprometam com a regulação pública da concorrência capitalista, a redução das desigualdades econômicas e sociais, a universalização dos direitos do trabalho e o empoderamento do movimento sindical. Mas, tendo em vista a existência de rachaduras profundas no receituário neoliberal e nos alicerces da hiperglobalização, novas agendas públicas serão propostas e novos ordenamentos institucionais serão criados. Acreditando na sobrevivência e no fortalecimento da democracia, alguns analistas vislumbram a possibilidade de construção de uma nova realidade social, na qual a cidadania é exercida plenamente, todo tipo de trabalho é valorizado e o meio ambiente é protegido.


Neste momento, a prioridade é atenuar os impactos nefastos da crise sobre os segmentos sociais mais vulneráveis e recuperar a atividade econômica sem colocar em risco a saúde da população. Em paralelo, é necessário abrir caminhos de transformação das sociedades contemporâneas. Isso requer a somatória de muitas iniciativas, entre as quais a mobilização política dos trabalhadores (em especial por meio dos sindicatos, mas não exclusivamente) diante da nova problemática de aumento da redundância do trabalho em razão da revolução tecnológica em andamento.


Convém evitar tanto o pessimismo conformista como o otimismo ingênuo, mas não é fácil ser, ao mesmo tempo, coerentemente cético e perseverantemente sonhador. Embora mudanças profundas provavelmente não ocorram de modo abrupto, é possível preparar o terreno para semear novas ideias e representações sociais, criar programas eficazes de proteção e de integração social, desenvolver novas formas de emancipação dos trabalhadores e levar a sério a questão ambiental.

Marcelo Weishaupt Proni é docente do Instituto de Economia da Unicamp.

Uma versão preliminar do texto foi discutida com pesquisadores do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit-IE-Unicamp). O autor agradece todas as críticas e sugestões recebidas.



Professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit). É doutor em Educação Física e tem vários estudos publicados na área de Economia do Esporte. Autor do livro “A metamorfose do futebol” e coautor do livro “Impactos econômicos de megaeventos esportivos”.


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