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Marx vai ao cinema


Imagem: Kyu Sang Lee

Por Alexandre Vander Velden, João Leonardo Medeiros & José Rodrigues

Publicado originalmente no site a terra é redonda, em 28/08/2024



Apresentação dos organizadores da coletânea recém-publicada


Grandes invenções são quase sempre envoltas em disputas muito humanas, talvez demasiadamente humanas, sobre datas, locais de origem, e muito mais sobre os seus criadores. Isso vale, sem dúvida, para o avião – o nosso Santos Dumont ou os Irmãos Wright? –, para a fotografia – o francês Nicéphore Niépce, o franco-brasileiro Hércules Florence ou ainda também francês Louis Jacques Daguerre? –, para o cinema, que nada mais era do que a fotografia em movimento, a situação não é muito diferente.


Teria sido um brasileiro o inventor do cinema? José Roberto da Cunha Sales (1840-1903), nascido em Pernambuco, patenteou em 1897 a invenção de projetar imagens em movimento, apresentando para justificar o pleito uma sequência de cenas do mar batendo num píer, com menos de um segundo de duração.


Seja como for, a versão histórica hegemônica é que o cinema teria sido inventado pelos irmãos Auguste e Louis Lumière, a partir de dispositivos criados por Thomas Alva Edison. As míticas projeções públicas de La sortie de l’usine Lumière à Lyon [A saída da fábrica Lumière em Lyon], promovidas pelos irmãos, em dezembro de 1895, são consideradas o nascimento do cinema, inclusive já com a cobrança de ingressos. Parece que a sétima arte já nasceu com a marca da mercadoria.


O revelador do fetichismo da mercadoria, Karl Marx, morreu em 1883, enquanto Friedrich Engels faleceu em agosto de 1895, meses antes da suposta primeira emergência pública do cinema. Logo, nem Marx, nem Engels foram ao cinema. Mas, os marxistas nunca deixaram de frequentar a sala escura, de analisar obras cinematográficas, nem mesmo de fazer cinema, de Sergei Eisenstein a Ken Loach, de Leon Hirszman a Renato Tapajós.


Marx vai ao cinema: ensaios culturais materialistas sobre cinema, volume VIII da Coleção Niep-Marx,reúne um conjunto variado de 11 ensaios que precisamente têm em comum tomar obras cinematográficas como objeto de análise e/ou ponto de apoio para análise da sociedade que as produziram, tendo sempre o marxismo como ferramenta teórica, em diálogo fecundo com outras perspectivas mais ou menos próximas.


Cabe talvez registrar que o atual volume da coleção Niep-Marx não é o primeiro que se debruça sobre a cultura. De fato, em 2022, veio a lume Cultura contra a barbárie, organizados por Kênia Miranda e José Rodrigues, que reúne 11 textos também bastante diversos, sobre o teatro de Bertolt Brecht, Augusto Boal e Sérgio de Carvalho, a obra multifacetada de William Morris, passando pela literatura de mistério policial, pelo cinema novo, pela relação entre música e forma-mercadoria, chegando a uma cena teatral.


A coletânea que você, leitora, leitor, tem em mãos, também composta por 11 ensaios, não tem qualquer pretensão de dar um panorama da produção marxista brasileira sobre o cinema, mas apenas de reunir e divulgar algumas contribuições de intelectuais que são membros ou colaboradores do Niep-Marx.


O livro Marx vai ao cinema é aberto pelo ensaio Breve comentário sobre marxismo e história do cinema no Brasil, de Alexandre Vander Velden, que apresenta um panorama das contribuições de autores que influenciados ou em diálogo com o materialismo dialético construíram interpretações para a história do cinema (e a história da cultura de forma mais ampla), no Brasil. Com efeito, o texto visita a força das ideias nos anos de 1960 sobre a “situação colonial” de Paulo Emílio Sales Gomes e sua influência entre o jovem “moderno cinema brasileiro”.


Com o passar das décadas, as pesquisas avançam sobre novos objetos e metodologias, em importantes contribuições da “historiografia universitária” a qual apura o rigor teórico e de pesquisa, ao mesmo tempo em que se distanciam do marxismo. Por fim, aborda-se o que foi construído, no século XX, de diálogo entre materialismo e cinema a partir dos poucos livros que articulam esses temas, assim como de artigos em revistas marxistas.


“A leitura do mundo precede a leitura da palavra”: educação, cultura e política em Maioria Absoluta de Leon Hirszman, de Kênia Miranda e Alexandre Vander Velden, capítulo 2 desta obra, propõe uma leitura crítica e dialética do documentário Maioria Absoluta (Leon Hirszman, 1965) à luz de seu tempo histórico, situando seu diálogo com os movimentos de educação e cultura popular do início da década de 1960.


Segundo filme dirigido pelo jovem comunista Leon Hirszman e censurado no Brasil recém-golpeado por uma coalizão empresarial-militar, vibra no documentário o anseio por uma pedagogia emancipatória e a observação crítica sobre as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores rurais, bem como o anseio didático e mobilizador com o espectador. Nessa leitura fílmica e histórica são visitados os movimentos de educação popular, de cultura e o então nascente Cinema Novo, hoje com 60 anos.


O texto ainda aborda trabalhos sobre cultura e política no Brasil da década de 1960 que apontam o “idealismo”, o “autoritarismo” e a suposta distância dos artistas e intelectuais do “popular” a leituras que complexificam a materialidade da produção da cultura na sua relação com a luta de classes.


O terceiro capítulo desta coletânea de ensaios, “A Dupla Jornada, à luz de Helena Solberg”, de autoria de Nina Tedesco e Thaiz Senna, aborda um aspecto candente nos debates contemporâneos sobre a condição da mulher sob o modo de produção e de vida capitalista, a partir do olhar de Helena Solberg, a cineasta brasileira há mais tempo em atividade contínua. Assim, neste capítulo, as autoras analisam o média-metragem à luz da Teoria da Reprodução Social (TRS). Assim, não é um acaso que a dupla jornada, conceito fundamental da TRS, tenha tamanha centralidade neste documentário – a ponto de ter se tornado seu título.


Já disseram que o Brasil não é para amadores ou iniciantes. O texto “Bacurau: no futuro, só resistência?”, de Carla Macedo Martins e Ana Lucia de Almeida Soutto Mayor, capítulo 4 de Marx vai ao cinema, discute o filme brasileiro Bacurau, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, lançado em 2019. O binômio moderno-arcaico e a melancolia comparecem na obra como alegorias deste nosso país de capitalismo dependente. O ensaio ainda debate figurações em torno do projeto de nação, da transformação social e da resistência das camadas populares no Brasil do aqui e agora.


O capítulo 5 de nossa coletânea, “Cinema e emancipação humana: a propósito de algumas interpretações marxistas de Chaplin”, de Miguel Vedda, se encarrega de examinar, em primeiro lugar, uma série de interpretações da obra cinematográfica e do perfil artístico de Charles Chaplin realizadas por pensadores e escritores marxistas (Bela Balász, Ernst Bloch, Walter Benjamin, Theodor W. Adorno, Bertold Brecht, György Lukács).


Em segundo lugar, o artigo se propõe a estudar o desenvolvimento crítico das reflexões sobre Chaplin feitas por um dos principais teóricos (marxistas) do cinema, Siegfried Kracauer. Os artigos do ensaísta frankfurtiano situam a produção de Chaplin em relação aos contos maravilhosos populares [Volksmärchen] e, por outro lado, ao surgimento de um novo modelo de subjetividade, alinhado com a Modernidade do século XX. Ao mesmo tempo, Siegfried Kracauer indaga sobre as razões – sociais, políticas, mas acima de tudo estéticas – para a repercussão que alcançou a figura do vagabundo em um público altamente heterogêneo e em nível mundial.


“Eisenstein e a memória da Revolução Soviética em Outubro (1928): entre a arte de vanguarda e a nascente narrativa stalinista”, de Marcio Lauria Monteiro, capítulo 6 de Marx vai ao cinema, argumenta que Outubro marca a própria transição do cinema soviético. No meio caminho entre documentário e ficção, como propôs o próprio Eisenstein, e entre poesia e história, como propôs Rosenstone, Outubro também ficou no meio do caminho entre ser, por um lado, uma ousada peça de arte de vanguarda, através da qual Eisenstein tentou dar um passo adiante na suas teorias estéticas, com a “montagem intelectual”, e através da qual também perpetuou aspectos da memória associada aos primeiros anos da revolução, e ser, por outro lado, um instrumento da nascente narrativa stalinista sobre a Revolução Soviética.


Em “Oppenheimer e a reificação: comentário sobre o filme de Christopher Nolan”, Maurício Vieira Martins, autor do capítulo 7 desta coletânea, sustenta que a categoria da reificação permite uma melhor visualização da contraditoriedade da história de Robert Oppenheimer, que dirigiu o Projeto Manhattan, através do qual foram produzidas as primeiras bombas atômicas da história, lançadas contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki, em 1945.


Tal categoria – a reificação – enfatiza o fato de que processos e relações criados por seres humanos se sobrepõem aos seus criadores e acabam por subjugá-los. Assim, a internacionalização do general intellect que Marx detectou no século XIX – constituído pelo acúmulo do saber de uma época – findou por retroagir de modo letal sobre a humanidade. O resultado agora reificado é algo como “Sua Majestade, a Bomba”, a face talvez mais mortífera do capital.


Em 1975, imediatamente após o processo de derrubada da longeva ditadura salazarista em Portugal, um grupo de cineastas, técnicos de cinema e ativistas políticos lançaram-se na tarefa coletiva de documentar as massas e o processo político que tomaram as ruas de Lisboa. As armas e o povo (1975), documentário assinado pelo Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, surgido no contexto da Revolução dos Cravos, é o objeto de análise do capítulo 8, “As armas e o povo: empunhar o discurso ou deixar falar os sujeitos?”, de Adriano Del Duca. Sem querer estragar a leitura, pode-se destacar que o “filme militante, em sua busca por representar, justificar e exaltar os processos políticos com os quais se identifica, não se isenta das contradições de seu discurso. Não é possível atravessar incólume o território da política”.


A atual crise do capitalismo, disparada, grosso modo, em 2008, é tematizada em dois textos. Em “O Feitiço do Tempo: a crise financeira de 2007/2008 nas telas do cinema”, capítulo 9 desta obra, Marcelo Dias Carcanholo e João Leonardo Medeiros debatem a questão confrontando três produções estadunidenses, muito hábeis ao expor o jogo financeiro sujo e irresponsável que detonou a crise: Capitalismo: uma história de amor (2009), de Michael Moore; Wall Street: o dinheiro nunca dorme (2010), de Oliver Stone; e Trabalho Interno (2010), de Charles Ferguson.


O título principal nos remete a uma famosa comédia, de 1993, dirigida por Harold Ramis, com Bill Murray e Andie MacDowell, que em nada trata da crise do modo de produção capitalista… Ou trata? Bem, não vamos estragar a leitura.


Já no capítulo 10 de Marx vai ao cinema, “Lacan com Marx em Wall Street, um dia antes do fim: uma análise de Margin Call a partir do encontro da teoria dos discursos lacaniana e da crítica da economia política marxiana”, José Rodrigues procura, como os título e subtítulo indicam, analisar o filme Margin call: o dia antes do fim. O filme, dirigido e roteirizado por J.C. Chandor, foi lançado em 2011 eretrata ficcionalmente as horas imediatamente anteriores à quebra do banco Lehman Brothers. Esta falência, em 2008, precisamente detonou a crise na qual ainda estamos atolados. O que esta dupla, talvez insólita, Marx/Lacan, teria a nos dizer sobre aquela madrugada?


Fechando a nossa coletânea, João Leonardo Medeiros e Bianca Imbiriba Bonente abordam a sequência de um grande filme da década de 1980, dirigido por Ridley Scott, cujo protagonista foi encarnado por Harrison Ford. O ensaio sobre Blade Runner 2049, cujo título é “Humanos: more capital than capital”, aborda essa obra como meio para refletir sobre a (não) existência de formas de “vida” dotadas de inteligência artificial. Os autores caracterizam a crença na ameaça representada pela inteligência artificial como um mito e indagam tanto sobre suas raízes históricas quanto sobre sua eventual relação com o desenvolvimento capitalista.


Após a leitura desses capítulos, ora brevemente apresentados, o leitor perceberá como o cinema, ao ser analisado a partir de categorias e da filosofia do marxismo, pode nos auxiliar na compreensão do mundo da mercadoria, assim como se apropriará da riqueza de reflexões sobre a sociedade por cineastas e artistas influenciados por Marx e seu espectro. Entretanto, como materialistas, é preciso ser justo com o estado atual das coisas e observar que o “marxismo cultural” – a análise do entrelaçamento “sociedade e cultura” a partir de Marx e dos marxismos – faz-se um tanto marginal tanto nos corações, como nas batalhas das ideias na crítica cultural.


Seja em debates públicos não especializados, em revistas e jornais, na academia, em publicações especializadas sobre literatura, teatro, artes plásticas, música e outras artes, pouco ouvimos falar sobre marxismo. O que dirá uma teoria ou história do cinema materialista e dialético neste país periférico Brasil. Ainda que quase sempre a partir de suas disciplinas específicas, os marxistas não deixaram de escrever sobre cinema e lançar ensaios e análises das mais interessantes, como as presentes nesta coletânea.


Mas retornemos à pergunta que intitula essa apresentação – Marx foi ao cinema? Tendo clara a longa jornada a ser desbravada por uma teoria cultural de peso no debate público, e também cinematográfico, que trate sob as lentes da luta de classes e da totalidade a cultura e todos aspectos da vida social – em outras palavras “marxismo cultural” e materialismo histórico dialético –, a nossa conclusão é que o espectro de Marx não só foi, como seguirá frequentando e fazendo cinema em companhia de gerações e gerações de marxistas espalhadas por todo o mundo. Ação!


*Alexandre Vander Velden é professor de história do cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF).


*João Leonardo Medeiros é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).


*José Rodrigues é professor da Escola de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).


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