Entrevista com Luis Fernando Veríssimo, realizada por Roberto Dias e
publicada na Folha de São Paulo em 06/01/2020
Escritor diz não entender 'como uma pessoa que enxerga o país à sua volta, vive suas desigualdades e sabe a causa das suas misérias pode não ser de esquerda'
A convite da Folha, Luis Fernando Verissimo imaginou como atuaria o Analista de Bagé diante de alguns temas contemporâneos.
Por exemplo: Jair Bolsonaro. O presidente seria recebido no consultório com uma das clássicas joelhadas de um dos mais famosos personagens criados pelo escritor gaúcho.
Lançado em 1981, o "Analista" foi um sucesso instantâneo. Psicanalista heterodoxo, de traços gaúchos marcantes, o personagem ganhou um monumento em Bagé. Além de uma do próprio Verissimo, há estátuas do Analista e de sua secretária, Lindaura, fundamental para ajudá-lo a resolver os casos mais complicados.
Aos 83 anos, Verissimo reclama dos males do corpo, mas não deveria ter nenhum motivo para se queixar da mente. Está intacto o pensamento aguçado e bem-humorado que fez dele um dos mais populares escritores brasileiros.
Sua fama o transformou numa vítima frequente de fake news nas redes sociais. "Já fui muito elogiado pelo que nunca escrevi", afirmou ele à Folha há dois anos.
Nesta conversa, Verissimo escreveu. Optou por fazer a entrevista por email, após um encontro em São Paulo –onde ele participaria de uma homenagem ao pai, o também escritor Erico Verissimo (1905-1975).
À saída, diante do elevador, o repórter disse à mulher de Verissimo, Lúcia Helena, e às filhas Mariana e Fernanda que compreendia a opção pelo formato da entrevista: "Se eu escrevesse como ele, também preferiria responder por escrito".
Como seria uma consulta de Jair Bolsonaro com o Analista de Bagé? O Analista receberia o Bolsonaro com um joelhaço, para inveja de muita gente.
E se Olavo de Carvalho estivesse na antessala com Lindaura, que indicação ela daria ao Analista? Ela avisaria: "esse veio pelo SUS, doutor, que no caso dele quer dizer Sou Uber Sim".
O Analista de Bagé teria um tratamento para os aspectos que o escritor Luis Fernando Verissimo critica no governo Bolsonaro? Teria, mas envolveria tratamento com águas, lobotomias e talvez uma nova eleição. Séria, desta vez.
Para encerrar essa jornada do Analista de Bagé: como o inventor do personagem narraria, em 2019, uma consulta de um transexual no consultório do Analista? O sr. se sente como o roteirista de 'De Volta para o Futuro' ao pensar nisso? O transexual procuraria o Analista por estar em revolta contra a sua porção mulher, o que poderia ser interpretado como homofobia.
Quando as fakenews ganharam a visibilidade atual, imagino que o sr. tenha pensado algo como "bem-vindos ao meu mundo". As fakenews chegaram a ser engraçadas para o sr.? Se sim, deixaram de sê-lo? Quando? Na medida em que são formas de ficção, as fakenews requerem alta dose de criatividade para competir com as news de verdade, estas sim, frequentemente incríveis.
O Bolsonaro e alguns dos seus ministros são claramente figuras do realismo mágico, mas reais.
Uma hipótese: o sr. recebe muito mais comentários de leitores quando escreve sobre temas políticos do que sobre outro assunto. Se certa a hipótese, isso faz sentido? Por que tamanho fascínio das pessoas em discutir política? A eleição de um candidato improvável como o Bolsonaro energizou o meio político. Parafraseando o que disse aquele irmão Karamázov do Dostoiévski sobre a ausência de Deus, se um Bolsonaro chegou à Presidência do Brasil, tudo é permitido.
As pessoas mundo afora se cansaram de fazer política no sentido de ganhar corações e mentes? Eu acho que é o contrário, grupos que não sonhavam com o sucesso político, quase sempre de extrema direita, estão chegando ao poder pela via eleitoral em várias partes do mundo.
Quando o sr. navega em redes sociais, o que mais chama sua atenção? O ódio das pessoas. Prova do que eu sempre digo: o mundo não é mau, é só muito mal frequentado.
É cansativo ser de esquerda? Ou seria mais cansativo não ser de esquerda? Talvez ingenuamente, eu não entendo como uma pessoa que enxerga o país à sua volta, vive suas desigualdades e sabe a causa das suas misérias pode não ser de esquerda. Ser de esquerda não é uma opção, é uma decorrência. Mas que às vezes desanima, desanima.
Como o sr. escolhe um tema para escrever uma coluna no jornal? A crônica, ou a coluna, nos permite variar de assuntos e chamar o que sair de crônica. Não nos obriga nem a ser coerentes na escolha do tom, do "approach" como dizem na Mooca, ou do estilo. Pelo menos eu não me sinto obrigado.
Como é ser convidado a opinar sobre tudo? O sr. se impõe limites? (Por favor, não os estabeleça nesta entrevista). É bom ter a liberdade de opinar sobre tudo, dentro dos limites da clareza e do bom senso que você mesmo se impõe. Eu comecei a ter um espaço assinado em jornal em 1969. Época do Médici, da censura à imprensa, dos assuntos proibidos. Sei bem como era.
É triste constatar que voltam a falar em controle da mídia e ameaçar com uma nova edição do AI-5. No Brasil a nostalgia é uma força politica ainda a ser estudada.
A possibilidade de o leitor reagir a qualquer mensagem hoje é muito maior. Em que medida isso altera a mensagem original? Quem escreve pode ficar com medo da polêmica? Ou, ao revés, escreve tão somente para procurá-la?
Não se deve escrever com medo da reação e da polêmica, ou atrás da reação e da polêmica. Deve-se aproveitar a liberdade que existe hoje, com todas as restrições econômicas combinadas com a revolução tecnológica que afetam os jornais e os jornalistas, antes que os censores e os nostálgicos voltem.

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