Por Luiz Antonio Aguiar
Brás Cubas, para quem não sabe, é aquele personagem do Memórias póstumas, de Machado de Assis, que, em uma versão recente, feita por Flora Thomson- Deveau, para o inglês, esgotou toda a sua edição de lançamento no primeiro dia em que foi posto à venda. Mais atual, impossível. Brás Cubas se dá ao luxo de se erguer da tumba para contar a sua autobiografia, que considera preciosa. Ao final, lhe resta expor-se como um homem da elite que, em sua passagem pelo mundo terreno, nada deixou, nem algo humano, nem intelectual, nem afetivo, a não ser por um detalhe: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Desolador.
Ao mesmo tempo, de uma ironia soberba, voltada contra si mesmo.
Brás Cubas não faleceu de um “resfriadinho”. Foi uma gripe fortíssima, provavelmente uma pneumonia. A qual contraiu por ter tomado vento frio, enquanto imaginava aquela que poderia ser a sua obra genial, aquilo que o tornaria famoso, finalmente, o “Emplasto Brás Cubas”. Uma panaceia destinada a curar todas as doenças e até mesmo a aliviar a melancolia da humanidade. Enquanto tomava o vento que o matou, ia imaginando o rótulo do produto, com seu nome em destaque, e a “nomeada” de que tinha tanta sede. Fama.
Preocupou-se com a fórmula? Com o conteúdo? Em momento algum isso passou pela cabeça do nosso patético protagonista. Nosso não, de Machado de Assis.
O romance surgiu em 1881. É tão importante, em nossa Literatura, que há quem diga que foi aí que ela, a Literatura Brasileira, ganhou sua maioridade. Machado, com seus romances, trazia os conflitos universais – que o mundo discutia, refletia – para os cenários e personagens brasileiros, ao mesmo tempo em que demonstrava na prática, que, sempre misturando galhofa à melancolia, esses personagens, falando um português brasileiro, poderiam ser bem aceitos pelo público ao vivenciar dilemas tão complexos quanto os dos espíritos verossímeis de seres humanos de um Shakespeare, ou de qualquer outro grande criador de personagens dotados de vida. Não humana, nem sequer orgânica, mas vida.
Daí, para a cloroquina.
Funciona contra a Covid-19? A não ser os assessores desse nos apresidenta, seu freek-ministério, dos poucos médicos que se prestaram a serem alugados por ele, e o próprio, ninguém mais no mundo defende isso. Talvez, o Trump. Que não é deste mundo. E logo deixará de ser parte da história dele também.
No entanto, magotes desta panaceia estão sendo distribuídos aos povos indígenas – em processo de genocídio, vítimas da pandemia, da invasão de suas terras por quem leva a pandemia e da falta total de cuidados que, embora responsabilidade do Governo, ainda mais no caso dos indígenas, devido ao seu status especial diante da Constituição, estão, para dizer tudo numa palavra , sendo extintos deliberadamente por quem acha que isso facilitará a tomada de suas terras. No entanto, ainda, o governo federal, que não têm médicos tratando da Saúde, exige que a droga seja utilizada pelo SUS, pressiona médicos e instituições a recomendá-la etc.
Sabe-se que os efeitos colaterais da panaceia são severos, podendo levar ao infarto e a tromboses, e que não pode ser ministrada sem assistência médica, do tipo que o apresidentado dispõe, com médico particular acompanhando-o para cima e para baixo, exames diários etc. E, mais ainda , sabe-se que ela não serve para tratar a Covid.
Ou serve tanto quanto o Emplasto Brás Cubas. A sede de “nomeada” é a mesma tanto no defunto-autor quanto no garoto-propaganda da panaceia. Ambos desejariam ser adorados como mitos, salvadores. A falta da valorização da vida de quem irá consumir sua gororoba é a mesma. Não se considera esse aspecto. Mas, melhor o emplasto que, pelo menos, como placebo, não tem efeitos colaterais que levem à morte. Talvez para evitar convencer algum incauto, Machado teve a lucidez de fazê-lo, o morto autobiógrafo, tão cínico que é impossível leva-lo a sério. E os incautos existem. A nossa versão de Brás Cubas tem seguidores. Haja vista o show de contaminação dos domingos, no Planalto.
O que poderá dizer, esse que está no poder, para fechar sua autobiografia, que eventualmente pode ou não escrever, ou encomendar a alguém que a escreva? Terá sido um bom presidente? Não. Terá se dedicado a solidificar a democracia em nosso país? Não. Terá assistido um pouco que fosse os mais vulneráveis: de jeito algum. Em sua visão, meio ambiente, a questão de gêneros, antirracismo, antihomofobia, cultura em geral e educação em particular têm de ser purificados das infiltrações esquerdistas. Para tanto, está acabando com tudo isso.
E quantos mais o negacionismo matará?
No caso, esses mortos também se levantarão da tumba e o acusarão. Pesarão na cabeça de todos nós. A normalidade nunca voltará, não num país que vive uma tragédia humanitária evitável, como o nosso. Pesará na consciência, ou no coração de todos.
Que pelo menos, “ele” não tenha que encerrar sua autobiografia com um “Das Negativas”, porque, daí, a negativa maior será o seu legado, previsto pelo mesmo mundo, que nos isola como se tivéssemos (e temos!) a peste (ou mais de uma, a que circula e a de Brasília). Só que essa negativa derradeira seria a devastação do país e dos seus povos.
Luiz Antonio Aguiar é escritor, com mais de 160 livros publicados, premiado no Brasil e no exterior, como em seu livro Sonhos em Amarelo, publicado pela Melhoramentos. É mestre em Literatura Brasileira, especializado nos romances clássicos nacionais e estrangeiros, particularmente Machado de Assis, sobre quem tem vários livros publicados. Escreveu uma adapatação de Moby Dick, publicada pela FTD. É professor de Literatura e de escrita literária, na Cátedra de Leitura Unesco-PUC/Rj. Tem ensaios informais sobre temas literários, no BLOG DO LUIZ ANTONIO AGUIAR, na aba Fora de Ordem. Nasceu em 1955, mora no Rio de Janeiro.
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