Uma política de Estado para o esporte
RAUL MILLIET FILHO
Folha de São Paulo, 28 de agosto de 2004
Uma política de esportes em um país como o Brasil deve contemplar, como prioridade quase absoluta, o esporte social, com a maior parte dos recursos públicos para o setor. Consideramos esporte social o esporte cidadão, voltado ao atendimento das camadas mais pobres da população, praticado nas escolas e bairros populares.
No que tange ao esporte de alto rendimento, pode e deve existir uma relação de complementaridade com o esporte social, sendo que este último deve buscar na iniciativa privada a quase totalidade dos recursos necessários para efetivar seus projetos.
Uma política de Estado para o esporte no Brasil, dentro de uma perspectiva de democracia política e social (que nunca existiu, a não ser em projetos focalizados), não pode ser encaminhada descolada da realidade social mais ampla. Na verdade, uma política de esporte deve ser concebida no quadro mais geral das políticas sociais, abordada como política pública, sobretudo como política pública de educação.
Por outro lado, seria impensável traçar políticas sociais não vinculadas organicamente à política econômica, incluindo uma política de esporte. Tendo em vista o caráter regressivo e concentracionista que prevalece em nosso país, notadamente nos últimos 20 anos, as políticas sociais compensatórias ganham dimensões crescentes ao mesmo tempo em que se tornam cada vez mais ineficazes, porque substitutivas da ausente política progressiva de renda.
E qual a política econômica hegemônica nas duas últimas décadas, inclusive no governo Lula? Não vou repetir o que vários articulistas têm dito; o que o próprio presidente do BNDES, Carlos Lessa, tem esposado, com arrojo e coerência. Creio que fica patente a hipocrisia da defesa de políticas públicas fatiadas, concebidas no varejo, como panacéia para mazelas sociais. Não pretendo defender propostas liqüidacionistas, anulando efeitos positivos de políticas sociais específicas; só quero assinalar suas limitações incontornáveis nesse quadro mais geral.
No caso específico das Olimpíadas, várias pessoas que têm analisado o assunto estão roucas, cansadas de tanto repetir que a tese de que é necessário investir prioritariamente no esporte de alto nível, objetivando, através do exemplo dos ídolos e das vitórias, expandir a base, é duplamente equivocada. Em primeiro lugar, porque sem a formação de uma estrutura não se pode pensar no desdobramento mágico, autônomo, de novos clubes, novas equipes; por outro lado, em um país como o Brasil, onde o alto grau de indigência social assume contornos de uma situação emergencial, seria no mínimo um contra-senso definir como prioritário o apoio do Estado ao esporte de alto rendimento.
Cabe ao Estado, nesse setor da vida pública, investir onde sua ação possibilitar a criação de mecanismos geradores de novos empregos, além da multiplicação de programas complementares à formação escolar da criança de baixa renda. Nunca é demais lembrar que investimentos no esporte social têm uma capacidade de geração de emprego cinco vezes maior (custo per capita) do que no alto rendimento. Nesse caso, os recursos devem ser investidos quase que exclusivamente em custeio: pessoal (professores, estagiários, pedagogos etc.), material esportivo e alimentação.
Todos os levantamentos realizados apontam para uma subutilização das áreas esportivas existentes, que, em sua maioria, demandam, quando muito, pequenas reformas, solucionáveis com investimentos locais insignificantes. E um país como o nosso, antes de pretender se transformar em potência olímpica, deve almejar garantir o acesso da população a padrões mínimos de vida.
Por fim, não poderíamos deixar de grifar nosso inconformismo com a gestão do ministro Agnelo Queiroz, que, por meio da Lei Agnelo-Piva, dos repasses de estatais (assistidos no mínimo passivamente pelo ministro), possibilitou uma apropriação privada de recursos públicos, transferindo para o COB e as principais confederações a condução de fato da política pública de esportes no Brasil, privilegiando o alto rendimento, que conta hoje com mais recursos que o próprio ministério, mantendo vivos os velhos mecanismos do capitalismo cartorial brasileiro. Onde estamos? No Queen Mary ou no Titanic?
Por fim, qualquer lei de incentivo fiscal -leia-se renúncia fiscal- tem o mesmo impacto sobre os cofres públicos que as dotações aportadas pelo Orçamento da União. Repasses efetuados diretamente pelo Executivo federal, mediante planejamento prévio, permitem controle mais rígido dos gastos, além de uma maior racionalidade de resultados, através de parcerias e integração com outras esferas de poder -se é isso que se pretende, bem entendido.
Outro aspecto refere-se à promiscuidade de associar jogos de azar, muitas vezes controlados por grupos mafiosos, à liberação de verbas para o esporte (como os bingos). Incentivando práticas como essas, que, mesmo gerenciadas com lisura, semeiam perversamente a ilusão do enriquecimento fácil, o governo revela sua insensibilidade diante da tragédia em que vive a maioria de nossa população.
Raul Milliet Filho, doutor em história social na USP, pesquisa a história do esporte no Brasil e é especialista em políticas públicas na área social.
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