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Foto do escritorFlavio Pessoa

Racismo na caricatura brasileira

Atualizado: 21 de jan. de 2022


João Candido, principal liderança da Revolta da Chibata em 1910, no Rio de Janeiro é conduzido para a prisão. A Revolta da Chibata foi um impacto decisivo na reforma da Marinha. Dali em diante a chibata não seria mais utilizada como castigo nas Forças Armadas Brasileiras.

O mestre-sala dos mares - composição de João Bosco e Aldir Blanc:



CARICATURAS RACISTAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA


por Flavio Pessoa


Racismo Estrutural vs “Racismo Reverso”.


Inicialmente, eu planejava publicar esse artigo por ocasião do Dia da Consciência Negra, mas compromissos profissionais inadiáveis acabaram me forçando a adiar esta escrita. Bendita providência do acaso. Esta data comemorativa merece uma abordagem positiva, uma perspectiva que celebre conquistas, que recorde a militância e a resistência política e cultural, que sublinhe o crescimento dos movimentos anti-racistas no Brasil, ou que desse um novo enfoque à relevância inquestionável das matrizes culturais africanas, alicerces da produção cultural brasileira, maior riqueza imaterial deste país. E será este o teor do artigo que, desde já, me comprometo aqui a escrever para o Blog Deixa Falar, em homenagem ao 20 de novembro deste ano, quando estaremos nos despedindo de um longo período de trevas, se o destino político do país transcorrer como esperamos. Infelizmente, o racismo é sempre um tema atual, assunto inevitável num país com o nosso histórico político e dispensa a necessidade de uma data marcante para falarmos sobre essa mácula nacional. Há 134 anos, foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Há três, foi capaz de eleger para a presidência da República, o político de extrema-direita mais execrável do país, reconhecido por declarações escandalosamente racistas. Pois era evidente e esperado que este poço sem fundo de ignorância debocharia da Fundação Palmares, nomeando para presidi-la, um negro que chama a luta anti-racista de vitimismo, que despreza as grandes personalidades da resistência negra do Brasil. Em "A identidade cultural na Pós-modernidade”, Stuart Hall já observava que George Bush, pai, eleito presidente dos Estados Unidos em 1991, “jogava o jogo das identidades”, ao nomear Clarence Thomas para a Suprema Corte americana, um juiz negro de valores consevradores. Assim, apesar de ser negro, Thomas teria apoio dos conservadores, e também de progressistas, por ser negro, apesar de conservador (HALL, 2006, p.18-19). Mas no caso mencionado por Hall, era um negro ocupando um cargo do mais alto poder judiciário, de esmagadora prevalência branca, fato de grande notoriedade e repercussão mundial. No caso da Fundação Palmares, entretanto, nomear um negro seria um pré-requisito, uma condição inegociável. Não se admitiria outra possibilidade, por mais que o nomeado estivesse engajado na luta anti-racista. Mas o nome de Sérgio Camargo, logo chamado de “capitão do mato” por quem repudiava sua indicação, constitui uma afronta ainda mais agressiva contra a resistência negra. Sua proposta mais recente foi mudar o nome da Fundação Palmares para Princesa Isabel, na tentativa de reafirmar um pretenso protagonismo branco na conquista da liberdade para o povo negro, quando a historiografia acadêmica já apresentou claras evidências dos esforços dos próprios negros na luta abolicionista [1]. E é neste Brasil, no país não africano com maior contingente de descendentes da África no mundo, em que a instituição mais representativa do movimento negro é presidida por um racista, que a todo momento surgem novos escândalos, tristes e vergonhosos episódios de racismo explícito. Temos visto uma profusão de imagens de agressões físicas e verbais sem fim, flagradas em câmeras de celulares, que circulam sem limites pelas redes sociais. Seguranças de lojas e supermercados perseguindo exclusivamente negros, acusando de roubo, espancando e assassinando. Torcidas em estádios de futebol insultando jogadores negros, clientes em lojas e restaurantes insultando funcionários negros. Todo ano, quando nos aproximamos do dia 20 de novembro, começam a circular nas redes sociais, postagens que contestam a validade de um dia reservado à celebrar a resistência e luta anti-racista, defendendo hipocritamente a necessidade de decretar o dia da “consciência humana”, argumento que sintetiza o cinismo e a ignorância das classes dominantes brasileiras. Recentemente, um artigo publicado na Folha de São Paulo causou repulsa, ao “denunciar” a abominação fantasiosa do “racismo reverso”, enumerando episódios de violência de negros contra brancos, como se em algum momento qualquer um dos casos mencionados pelo articulista ameaçasse, ou mesmo provocasse cócegas, na dominação hegemônica e violenta de brancos sobre pretos neste país. Há também uma imensa dificuldade de se compreender a real dimensão e o peso de uma ordem de discursos que contribuíram historicamente para a consolidação do racismo estrutural brasileiro, foco dos estudos de Silvio Luiz de Almeida, advogado, filósofo, doutor em Direito pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ao qual daremos maior atenção mais adiante. Se as incontáveis agressões racistas, físicas e verbais, que têm dominado o noticiário nos últimos anos, são a ponta do iceberg, outros dados disponíveis no site do IBGE apontam um enorme desequilíbrio étnico no que diz respeito à desigualdade social, inserção no mercado de trabalho, escolaridade, homicídios e marginalidade, e refletem uma realidade ainda extremamente hostil à comunidade negra do país.


O racismo caricatural

É preciso alertar que o racismo não tem uma cara só. Se muitas vezes, manifesta-se de forma explícita, em outras pode ser muito mais sutil, disfarçado, naturalizando estereótipos. Em um passado recente, piadas racistas já circularam muito mais à vontade do que nos dias de hoje, inclusive na mídia de grande audiência. Há dez, vinte, trinta anos, não causava repúdio como hoje em dia, o que de certa forma, pode ser percebido como um avanço. Mas ainda que isso represente uma conquista simbólica extremamente importante, ainda temos que conviver com insistentes reações racistas por parte de quem não percebe a força simbólica da palavra, o poder dos discursos, seja cômico ou oficial, seja verbal ou visual. Humor não é inofensivo. Alimenta e propaga o preconceito, contribuindo para naturalizar o “direito de oprimir”. Ao longo de minha pesquisa de doutorado, sobre representações caricaturais do povo brasileiro na Primeira República [2], notei que os personagens caracterizados como Zé Povo, a personificação do povo brasileiro na caricatura das duas primeiras décadas do século XX, muito raramente eram negros. As representações caricaturais racistas que focalizo aqui, são caracterizações estereotipadas e extremamente preconceituosas de personagens negros, mas não são personificações explícitas do povo, enquanto representante da nação. É um conjunto de charges que analisei em minha tese, mas por não se enquadrarem nesta característica, não estavam no foco principal do estudo.


No entanto, trata-se de material de enorme relevância, que muito pode contribuir para lançarmos novos olhares sobre o poder discursivo do caráter opressor da caricatura e também sobre uma forma específica de discurso racista que muito contribuiu para reforçar o racismo estrutural. É preciso ter sempre em consideração, o enorme alcance e a imensa popularidade desses semanários ilustrados. Com tiragens que começaram com 40 mil e chegaram a cerca de 60 mil, no período abordado, vale lembrar que antes da era de ouro do rádio, a imprensa periódica constituía certamente o veículo de comunicação de massa privilegiado, entre os de maior alcance do país. Seus exemplares eram facilmente encontrados nas ruas, em barbearias, consultórios e engraxates.


Do mesmo modo, veremos que as manifestações culturais de raízes africanas, em sua maior parte, serão negligenciadas ou tratadas pejorativamente. Neste período identificado como Primeira República, que antecede a era Vargas, eram ainda muito eventuais, nas revistas satíricas ilustradas que eu pesquisei, O Malho e Careta, as representações da música popular. Neste momento, gêneros musicais como o maxixe e o samba estavam sendo geradas no seio das comunidades negras que se instalaram na Cidade Nova, na Zona Portuária, região que ficou conhecida como a Pequena África. Poderiam até ser executados nos bailes promovidos pela elite, mas foi um escândalo quando em 1914, a Primeira Dama e cartunista Nair de Tefé, esposa do presidente Hermes da Fonseca, ousou executar ao violão, o popularíssimo “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga, em uma recepção oficial no palácio presidencial Mesmo do chorinho, que há muitos anos, já frequentava desde o último quarto do século XIX, os nobres salões da elite carioca, vi poucas representações, ao longo de quase 30 anos, entre 1902 e 1930. Quando as revistas O Malho e Careta começaram a circular nas grandes cidades do país, na primeira década do século XX, a sociedade brasileira carregava ainda a forte influência das teorias racistas cientificistas. Prevalecia a percepção de que, devido a fatores climáticos, os povos negro e indígena estariam em um estágio de evolução mais atrasado do que o branco europeu. Desde os primórdios do pensamento social brasileiro, essa linha de raciocínio aceita e defendida por nomes como Nina Rodrigues, Silvio Romero [3], entre outros, que lamentavam o que consideravam a má formação da nação brasileira, era influenciada por teorias cientificistas de Ferdinand Dennis, Buffon e Montesquieu. A partir desta crença, propunham o branqueamento da população, através da miscigenação com o branco europeu, como solução para o “problema”, por eles diagnosticado. Neste sentido, podemos compreender como esses discursos humorísticos racistas, que aqui analiso, eram aceitos e disseminados pela sociedade, sem qualquer resistência, incômodo ou mesmo estranhamento. Todos os que trazem no sangue a descendência africana de modo mais explícito, são representados de modo semelhante: com o mesmo tom escuro, narizes largos e bocas invariavelmente carnudas, em vermelho vivo. Eram representados em situações subalternas ou marginalizadas. Na maior parte das vezes salientava-se a ignorância, através da fala incorreta e cheia de gírias populares. Reproduziam também suas condições miseráveis e socialmente precárias. Quando não eram representados com postura humilde e submissa, eram associados à esfera criminal, pintados como marginais, vadios e assaltantes. Suas representações depreciativas nessas revistas são em si evidências da forma como o racismo se explicitava sem freios, censura ou pudor. Para não me alongar muito, selecionei apenas três ilustrações de um conjunto muito maior, mas que são suficientes para discutirmos aqui a contribuição caricatural para o racismo estrutural da sociedade brasileira.


Figura 01 – Loureiro. A asneira do moleque Benjamim. Legenda: Mamãe: “Moleque! Apanha pra não seres avoado quando eu te mandar comprar pó de arroz e pra não trazeres imitações e sim, o legítimo Pó de Arroz. Lady.” Benjamim: “Ahn! Ahn! ...A caxa e o rotu tava paricido...”Chiquinho: _ “Bem feito! Tava ‘paricido’ porque tu não enxergas direito. O Pó de Arroz lady é o melhor e não é mais caro. Chucha, moleque!” O Malho, Rio de Janeiro, Editora Pimenta de Mello, ano XVIII n. 883, 16 ago.1919, p.2 Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/116300/per116300_1919_00883.pdf, Acesso em: 22- jul. 2020.

Em 1919, circulou durante diversos números, no segundo semestre do ano, uma peça publicitária do pó-de-arroz Lady (figura 01). O anúncio naturaliza as relações de poder e de dominação branca sobre o corpo negro, e remete diretamente ao passado escravocrata do Brasil, legitimando o castigo físico entre patrão e empregado, mais de três décadas depois da abolição. O nível de violência explícita nesta peça publicitária, construída pelo viés do humor, é uma forma de naturalização da dominação, da humilhação e da submissão. Observa-se aqui uma clara evidência da disseminação ideológica, a que se refere o já mencionado filósofo Silvio de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama, em seu livro “Racismo estrutural” [4], conceito que explica a estrutura ideológica que internaliza a aceitação de que brancos mandam e negros obedecem.


Uma mulher branca, adulta, identificada como “mamãe”, figura no centro da ilustração de Loureiro [5], segura um menino negro pelos suspensórios, deixando-o pendurado em uma posição humilhante, que o deixa à mercê do castigo. Ela aplica no garoto sucessivas bordoadas nos glúteos, com as costas de uma escova. A cena é assistida e apreciada com sincero entusiasmo por um cachorro, de pé, sobre as patas traseiras, e pelo filho loiro da mulher branca, identificado como Chiquinho [6].


O garoto negro, além da posição vexatória, é o único humano descalço, detalhe que remete ao período escravocrata. Sua fala, ao contrário do filho da patroa, denota a ignorância de quem teve negada a oportunidade da formação educacional. Enquanto ele tem dificuldade de pronunciar palavras como “caixa”, “rótulo” e “parecido”, o outro mostra-se bem mais articulado. A única palavra em que Chiquinho não pronuncia corretamente, o faz apenas para debochar da fala do outro: “Tava “paricido” porque tu não enxergas direito.” Enquanto o garoto negro escorrega na pronúncia, até o cachorro é capaz de falar corretamente: “Aprende a ser escovado”.


É possível perceber nesta peça publicitária a permanência de valores difundidos pelo cientificismo racista, em voga desde o último quarto do século anterior. O professor de teoria literária Roberto Ventura [7], escrevendo sobre as teorias racistas de Nina Rodrigues, lembra que ele descrevia a comunidade indígena, negra e mestiça como infantil e inculta, reivindicando que estavam em um estágio inferior da evolução social. Não seria possível, por conta de sua inferioridade evolutiva, transformá-los em homens civilizados. Segundo sua lógica, nem mesmo levando em conta a domesticação do indígena ou a submissão do negro. De acordo com Ventura, Nina Rodrigues chegava a naturalizar e justificar o uso da força coercitiva: “O castigo e a violência física poderia contê-los, mas não os fariam adquirir consciência do direito e do dever” (VENTURA, 1991, p.54). Desse modo, este anúncio parece internalizar outra associação pejorativa, que não a marginalidade, mas a incapacidade cognitiva e intelectual de toda etnia, além de naturalizar e justificar a necessidade do castigo físico, trinta anos depois de abolida juridicamente a escravidão no Brasil. Retomando as reflexões de Silvio de Almeida, a publicidade pode ser percebida aqui como mais um espaço onde a ideologia faz propagar o racismo institucional, através dos meios de comunicação, de uma forma que naturaliza a posição hierarquicamente inferior do negro na sociedade, atribuindo à etnia, a mácula da limitação cognitiva e intelectual. Neste caso, soma-se à presente fonte histórica, um fator agravante. Por se tratar de um anúncio, não de uma charge, esta imagem iria ser publicada não apenas uma, mas diversas vezes, em diferentes números. É, por fim, uma evidência de que as condições adversas impostas ao povo negro ocorrem através dos mais diversos dispositivos discursivos, e prolongam-se para muito além do período escravocrata. De acordo com Silvio de Almeida, a noção de raça como um uma categoria referente a seres humanos, é um fenômeno do princípio da Idade moderna, que remonta ao século XVI. Até então, o termo era restrito ao ato de classificação entre plantas e animais. Portanto, não é um termo fixo, estático na história. Silvio explica que o uso do termo para distinguir humanos está associado a circunstâncias históricas que necessitaram de legitimação de relações de poder, como a exploração capitalista, a colonização do “Novo Mundo” e a escravidão. A partir das observações das diferenças culturais entre os povos, as questões antropológicas e filosóficas foram tomadas por outros campos de conhecimento científico, que se empenharam em buscar explicações físicas e biológicas, culminando num processo de desumanização dos povos nativos das Américas, da África, da Ásia e da Oceania. Em caráter científico, essas teorias fundamentam e legitimam as relações de poder, dominação e genocídio, que se estendem até os dias de hoje. O espírito positivista surgido no século XIX transformou as indagações sobre as diferenças humanas em indagações científicas, de tal sorte que de objeto filosófico, o homem passou a ser objeto científico. A biologia e a física serviram como modelos explicativos da diversidade humana: nasce a ideia de que as características biológicas – determinismo biológico – ou condições climáticas e/ou ambientais – determinismo geográfico – seriam capazes de explicar as diferenças morais, psicológicas e intelectuais entre as diferentes etnias. Desse modo, a pele não branca e o clima tropical favoreciam o surgimento de comportamentos imorais, lascivos e violentos, além de indicarem pouca inteligência. Por essa razão, Arthur de Gobineau recomendou evitar a ‘mistura de raças’ pois o mestiço tendia a ser o mais ‘degenerado’. Esse tipo de pensamento identificado como racismo científico, obteve enorme repercussão e prestígio nos meios acadêmicos e políticos do século XIX, como demonstram, além das de Arthur Gobineau, as obras de Cesare Lombroso, Enrico Ferri e, no Brasil, Silvio Romero e Raimundo Nina Rodrigues. (ALMEIDA, 2019, p.29). Silvio de Almeida esmiúça o racismo estrutural e institucional, observando como a dinâmica do funcionamento das instituições confere desvantagens e privilégios fundamentados e legitimados pela noção da distinção racial. Trata-se da institucionalização de normas, regras e discursos impostos pelos grupos dominantes, que naturalizam padrões de conduta e parâmetros discriminatórios, que contribuem para legitimar e manter poderes hegemônicos (Ibidem, p.33-69). O conteúdo das revistas aqui analisadas pode ser observado, ao mesmo tempo, como reprodutores e formadores de valores de uma sociedade. Ao nos depararmos com uma série de desenhos de humor, publicados nos periódicos pesquisados, que disseminam discursos e representações extremamente racistas, é fácil perceber como naturalizam e consolidam o racismo institucional e a legitimação da dominação social, política e econômica no país. Eram inúmeras as representações preconceituosas de negros na Careta, à semelhança d’O Malho, que os situam com frequência na marginalidade, detidos na delegacia ou planejando e cometendo assaltos. O que podemos assegurar é que são raríssimas as representações caricaturais de figuras negras que não sejam, de algum modo, explicitamente depreciativas e, consequentemente, racistas.


Figura 02 - J. CARLOS. A Poda das árvores. legenda: “_ Sim, senhor. Gosto disso. Cada macaco no seu galho.” Fonte: Careta, Rio de Janeiro, Editora Kosmos, ano XIII, n. 629, 10 jul.1920, p.19. Biblioteca Nacional BN Digital. Disponível em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.aspx?bib=083712&pagfis=23780 Acesso em: 20 dez. 2020.

Publicado na revista Careta em 10 de julho de 1920, o cartum de J. Carlos evidencia a forma extremamente depreciativa com que os negros eram representados. Sob o título de “A póda das árvores” (figura 36), a cena nos mostra o que este sugere. Uma grande árvore sustenta dois homens, que supomos tratar-se de funcionários da prefeitura, cada um pisando em um diferente galho, no alto de um comprido tronco. Eles têm nas mãos, um longo serrote de poda, com o qual cortam um galho menor, que eles seguram com a outra mão. Suas camisas são de mangas curtas, dobradas acima do cotovelo, calça com uma bainha exposta, pés descalços e um chapéu à cabeça. No personagem à esquerda, do qual aparece parte das costas, podemos notar um remendo nos fundilhos. Ao pé da árvore, olhando para cima, um senhor distinto, com trajes mais requintados, veste paletó, gravata, chapéu à cabeça que ele segura com uma mão apoiada sobre o topo, pra não cair, quando joga a cabeça pra trás. A outra mão apoia-se a uma bengala, que distribui o equilíbrio do personagem. Este é representado em diferentes tons de cinza, que reforçam a elegância do figurino. O desenho está definido em uma gama limitada de cores: laranja, dois tons de cinza, e preto. Aqui, J. Carlos utiliza o recurso cromático para transmitir um valor conceitual. Na roupas do senhor, uma combinação elegante de cores atribui ao personagem uma distinção que o diferencia completamente dos outros dois. Seu chapéu e a sua calça estão no mesmo tom de cinza, a casaca mais escura e, pelo pouco que aparece da camisa, a gola e a manga, percebe-se que são brancas. A cor da pele deste distinto senhor é dada pelo branco do papel. De preto, só a cor do cabelo e do bigode. Por que os outros dois personagens, mencionados anteriormente, são representados apenas no tom alaranjado? Este recurso cromático confere um destaque maior para o distinto senhor ao chão, à direita da imagem, enquanto este meio-tom alaranjado e uniforme resulta na perda de atenção e relevância para os outros dois. Para se perceber melhor o problema racial da imagem é preciso olhar com atenção para os homens podando a árvore. Camuflados pelo tom mais escuro que toma os personagens, quase não percebemos a definição à traço de seus lábios espessos, um dos quais segura uma ponta de cigarro ao canto da boca. Mas é no comentário do senhor que observa o trabalho dos outros dois, que reside o trocadilho tosco e o teor inquestionavelmente racista da imagem: _ “Sim, senhor. Gosto disso. Cada macaco no seu galho.” Percebe-se que o gatilho humorístico do cartum está ancorado somente na expressão racista. O tema banal, sobre a poda de árvores, constitui um mero pretexto para a associação racista entre negros e macacos.


A obra de J. Carlos foi reunida recentemente em generosa edição, que reproduz os desenhos originais do artista, rendendo uma preciosa publicação, editada pelo Instituto Moreira Salles. Nem Rafael Cardoso, nem o cartunista Cássio Loredano [8], em seus respectivos ensaios, pouparam o cartunista pelo preconceito latente, em uma infinidade de caricaturas estereotipadas, que animalizam personagens negros. Ainda que se considere que a aceitação pública deste tipo de humor, na época, possa conferir um irrelevante paliativo ao cartunista, é imperativo tentar compreender o significado intrínseco do preconceito enraizado, mesmo em profissionais que demonstraram, ao longo de suas trajetórias, valorizar diversas vozes e expressões da cultura afro-brasileira.


Figura 03 – J. Carlos. O inquérito. Legenda: O DELEGADO: _ “Reconheces o instrumento perfuro-cortante com o qual seccionaste o fio da existência do burguês incauto, prostrado, á traição, numa das principais artérias da nossa urbs?” O ACUSADO: _ “Faz favô de proguntá outra vez. Careta, Rio de Janeiro, Editora Kosmos, ano VIII n.390, 11 dez. 1915, p.23 Biblioteca Nacional BN Digital. Disponível em: http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.aspx?bib=083712&pagfis=15207 Acesso em: 20 jul. 2020.

Neste outro cartum de J. Carlos, intitulado “O inquérito”, publicado na Careta de sete de setembro de 1912, (figura 37) estamos numa delegacia, onde vemos um policial atrás de um homem negro, de pele bem escura, ambos de pé, em frente à mesa do delegado. A figura que representa o negro segue toda a cartilha do estereótipo caricatural da raça: lábios espessos em vermelho vivo, cabelo crespo, e pele bem escura. Na imagem não é possível perceber seus pés, que se confundem com o piso negro, de modo que não dá pra saber se ele está descalço ou calçado. Pelo brilho no coturno do policial atrás dele, podemos supor, por comparação, que é mais provável que o personagem negro esteja realmente descalço, confirmando a “regra” da maioria das representações de negros na caricatura. O soldado que conduz o acusado também é negro, mas de pele mais clara do que o acusado. Apenas compõe o ambiente e reforça, através do uniforme, a caracterização de uma delegacia. Com postura firme e ereta, este não diz uma palavra. Quanto ao delegado, para perguntar se a faca lhe pertencia, o faz de forma rebuscada e prolixa, exalando arrogância: _ “Reconheces o instrumento perfuro-cortante com o qual seccionaste o fio da existência do burguês incauto, prostrado, à traição, numa das principais artérias da nossa urbs?” A resposta do acusado denuncia sua falta de instrução de duas maneiras: na sua própria fala, atropelando-se em palavras coloquiais, e na absoluta falta de compreensão, diante da verborragia pretensiosa do delegado: _“Faz favor de proguntá outra vez?” Já na fala do delegado, observando com atenção, nota-se que ele já pressupõe levianamente a culpa do acusado, quando usa o verbo “secicionaste” num tempo verbal que não levanta dúvidas sobre ter sido o homem que está à sua frente, o autor da agressão. No livro “Cor e Criminalidade”, Carlos Antônio Costa Ribeiro [9] investiga o peso da discriminação racial no andamento e no veredito dos processos criminais brasileiros, no período entre a abolição e o fim da Primeira República. Ribeiro nos fornece números expressivos que denunciam a desproporção entre a condenação de acusados brancos para negros ou pardos. Dentre todas as características dos acusados e das vítimas nos processos criminais de acusação de "crime de sangue", o que está estatisticamente mais relacionado à decisão dos jurados é a cor dos acusados. Mais do que qualquer outra característica, a cor preta do acusado aumenta a probabilidade de condenação no Tribunal do Júri. Há uma enorme diferença entre as probabilidades de condenação dos acusados pretos e dos pardos em relação aos acusados brancos. O acusado preto tem 31,2 pontos percentuais a mais de probabilidade de ser condenado do que o acusado branco e o acusado pardo tem 15,8 pontos percentuais a mais de chances de condenação do que o acusado branco. (RIBEIRO, 1995, p.72).



Notas conclusivas

Observando esta série de imagens que acabamos de analisar, atribuindo ao negro a condição de vilania e marginalidade, trazemos novamente à discussão as observações de Silvio de Almeida sobre o papel da ideologia racista, que estrutura as instituições brasileiras. Silvio denuncia que todas as formas de preconceito racial, disseminadas e aceitas pela população, são sistematicamente reforçadas pelas diferentes instâncias institucionais da sociedade brasileira, entre elas, os meios de comunicação. Trata-se de um exercício de poder tão eficiente, que mesmo as pessoas negras e vítimas deste racismo estrutural, acabam por acreditar e reproduzir esse comportamento. Em suas palavras,

O exemplo que o autor nos oferece é o da televisão, mas é possível supor o alcance dessas ilustrações, publicadas num período anterior ainda ao advento do rádio, quando essas revistas eram um dos canais de comunicação de maior alcance, à disposição neste momento, como já afirmamos anteriormente.



São imagens extremamente poderosas, que reforçam associações preconceituosas entre o corpo negro, a marginalidade e a ignorância, externada em forma de incapacidade intelectual. É, portanto, impossível não dimensionar o seu papel primordial na colaboração e formação do racismo institucional no Brasil, principalmente através de imagens cuja apreensão e disseminação é muito mais rápida e eficaz do que textos. Nesse sentido, essa análise da caricatura racista amplia nossa percepção sobre o contexto histórico dessas representações e como esse triste legado se prolonga por muitas décadas para além do recorte histórico abordado em minha tese. É preciso jogar luz sobre essas vergonhosas representações culturais, como forma de recordar a potência discursiva do racismo, para entendermos que as manifestações racistas que presenciamos ainda hoje, são herdeiras de outras manifestações do passado. É o racismo entranhado na cultura popular, disseminando o preconceito no seio da sociedade.


Flavio Pessoa é formado em design gráfico, ilustrador do ramo editorial. Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV, da Escola de Belas Artes (2021), onde defendeu a tese "Jeca-Tatu a rigor: Representações do povo na Careta e n’O Malho: identidade nacional na Primeira República (1902-1929)." É mestre em História Comparada pelo PPGHC, IFCS (2013) com tese sobre as charges de futebol de Lorenzo Molas e Henfil para o Jornal dos Sports. Em 2001 concluiu a especialização em história da arte e da arquitetura no Brasil, pela PUC, com monografia sobre o ilustrador Roberto Rodrigues.



Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro: Polén, 2019. CARDOSO, Rafael. O moderno e o arcaico em J. Carlos. In: LOREDANO, Cassio; KOVENSKY, Julia; PIRES, Paulo Roberto. (orgs.) J. Carlos: Originais. São Paulo: IMS, 2019. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, p. 1222-1225. PESSOA, Flavio. Jeca-Tatu a rigor: Representações do povo na Careta e n’O Malho: identidade nacional na Primeira República (1902-1929). 2021, 476f. Tese (doutorado em artes visuais) Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Universidade Federal do Rio de janeiro, Rio de Janeiro, 2021 RIBEIRO, Antônio Costa. Cor e criminalidade: estudo e análise da justiça no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. VENTURA, Roberto. O Estilo tropical: histórica cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.


Notas de rodapé:

[1] José João Reis resgatou inúmeros casos de revoltas e até de greves de escravos em seus célebres livros editados pela Companhia das Letras: “Rebelião Escrava no Brasil”, “Negocição e conflito”, em parceria com Eduardo Silva, e a coletânea de artigos “Revoltas escravas no Brasil”, organização de J.J.Reis e Flavio dos Santos Gomes. [2] PESSOA, Flavio. Jeca-Tatu a rigor: Representações do povo na Careta e n’O Malho: identidade nacional na Primeira República (1902-1929). 2021, 476f. Tese (doutorado em artes visuais)Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Universidade Federal do Rio de janeiro, Rio de Janeiro, 2021. [3] Ainda que Nina Rodrigues tenha sido um dos pioneiros nos estudos das religiões de matrizes africanas, e Silvio Romero tenha defendido a inserção do canto do escravo negro na história da literatura brasileira, ambos percebiam a miscigenação como um entrave ao desenvolvimento social e cultural do país. Para Romero, “O servilismo do negro, a preguiça do índio e o gênio autoritário e tacanho do português produziram uma nação informe, sem qualidades fecundas e originais.” (ROMERO APUD VENTURA, 1991, p.49) [4] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro: Polén, 2019. [5] Luís Gomes Loureiro (1889-1981) contratado desde os 18 anos por O Malho S.A, tendo colaborado ativamente em diversos títulos, nos quais se destacavam as charges políticas para O Malho e as ilustrações infantis para o Tico-tico, segmento em que mais se notabilizou. LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, p. 1222-1225. [6] Chiquinho era um personagem das histórias em quadrinhos estadunidense, criada por Richard Outcoult (1863-1928), publicada no jornal The New York Herald, do qual Loureiro decalcava para a impressão litográfica no Tico-tico. Ver LIMA, 1963, vol.3, p.1223. [7] VENTURA, Roberto. O Estilo tropical: histórica cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. [8] CARDOSO, Rafael. O moderno e o arcaico em J. Carlos. In: LOREDANO, Cassio; KOVENSKY, Julia; PIRES, Paulo Roberto. (orgs.) J. Carlos: Originais. São Paulo: IMS, 2019. [9] RIBEIRO, Antônio Costa. Cor e criminalidade: estudo e análise da justiça no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

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