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Foto do escritorRaul Milliet Filho

Recordações de infância de João Evangelista Guerra

Atualizado: 11 de out. de 2021


João Evangelista Guerra

por Raul Milliet Filho


Sobre o autor: é com muita honra, alegria e emoção que o blog Deixa Falar divulga mais essa faceta do talentoso João Guerra. Pernambucano. Nascido em 06 de maio de 1935 na vila do Espírito Santo, futura Tabira, filho de Augusto Guerra e Quilá Guerra.

Dizia sempre que tinha nascido no sertão pernambucano bem próximo a Paraíba. Conversa macia, leitor dos clássicos no original, Guerra fez muita coisa na vida. Dono de um andar sincopado foi um administrador e gestor público raro.


Conheci o Guerrinha no Ministério da Previdência e residíamos no mesmo hotel em Brasília. Aos poucos, fui sabendo da sua história e dos seus amigos. Me tornei um deles.

Foi Secretário de Fazenda de Miguel Arraes na prefeitura do Recife e veio a ocupar o mesmo cargo quando Arraes foi eleito governador de Pernambuco. Homem de esquerda, habilidoso, era pule de dez que seria eleito sucessor de Arraes para governar Pernambuco. Mas qual o que. Com o golpe de 1964, no lugar de ir para o Palácio do Campo das Princesas, ocupou uma cela tendo como companheiro Chico de Oliveira, sociólogo e braço direito de Celso Furtado na SUDENE. Os dois apanharam um bocado, mas nunca fizeram praça desta passagem.


João Evangelista Guerra fazia diletos amigos por onde passava. Admirador da cultura popular brasileira, foi empresário de Baden Powell a quem chamava carinhosamente de Badeco. Conhecia a fina flor da literatura brasileira e europeia, dos filmes norte-americanos, europeus e japoneses sem perder de vista a disciplina necessária a um gestor.


Quando a vida nos separou geograficamente a conta de telefone para um e para outro nos enlaçou, gastávamos uma nota. Guerrinha foi morar no interior de São Paulo, depois em Salvador e por último no Recife onde veio a falecer em novembro de 2011.

Por e-mail recebi memórias e contos de sua autoria. Conversando com Chico de Oliveira fui encostado na parede. Ouvi respeitosamente uma ordem: “Raul, o que João Guerra confiou a você foi a posteridade de seus escritos, publique onde puder.”.


Obedeci ao que João Evangelista Guerra queria.


O Chico tinha razão. Não percam e leiam estas recordações de infância.


por João Evangelista Guerra


1. Não me dei ao trabalho de pesquisar: não sei se foi o anterior ou o início do governo Vargas que, antecipando o conto de Arreola (1), deu o primeiro passo para o desenvolvimento do país com a mudança do nome de vilas e povoados. Quem tinha nome português foi substituído por nomes indígenas ou já abrasileirados. Desse modo, a vila do Espírito Santo, em que nasci, foi substituída por Tabira e a vila de Água Branca mudou para o estranho Imoroti. Ambas no alto sertão, a primeira em Pernambuco e a segunda, a poucas léguas, na Paraíba. Lugares onde residia a família de minha mãe.

2. Também não procurei explicações sobre o fato de que a quase totalidade da população fosse branca, tal como vieram os primeiros exploradores portugueses. Talvez porque os exploradores fossem pobres e não tinham condições de comprar escravos. Daí a pequeníssima percentagem de negros. Também não existiam índios por lá.


3. De 1917 a 1938, essas povoações, como as demais do sertão, viviam o pesadelo de Lampião e seu bando, que invadia cidades, roubava, assassinava, estuprava e saqueava. Na época da coluna Prestes, cujo objetivo básico era reformar o governo conservador, este deu um exemplo de realismo político e deverá ter sido exemplo para as nebulosas negociações de Lula ou FHC. Através da Igreja, representada pelo Padre Cícero, negociou a adesão de Lampião na luta contra a Coluna. Concedeu ao bandido nada mais, nada menos, do que o posto de capitão.

4. Foi nesse tempo que aconteceu o fato mais importante da história de Água Branca e que foi objeto até de cordel. Embora a população da vila fosse pequena, bem como a atividade econômica, eram frequentes os boatos da sua invasão pelo bando de Lampião. Uma vez, entretanto, os boatos tomaram ares de coisa séria: toda a população se apavorou e buscou refúgio em um sitio um tanto afastado da vila. Todos, sem exceção, ali buscaram refúgio. Até um paralítico de nascimento, que nunca havia andado um só passo, foi deitado em uma cama, carregada por quatro pessoas. Assim, no início da noite, todos já estavam com todo medo do mundo, aguardando a chegada do diabo em pessoa. Mas, começaram a passar as horas e nada de Lampião. Começou o sono a atacar os refugiados e lá pelas duas horas Lampião não apareceu, mas o sono chegou. De repente, um engraçadinho grita a todos os pulmões: “Lampião está chegando!!!” Foi uma debandada geral. Em poucos instantes a multidão desapareceu, cada qual procurando o mais longínquo esconderijo. Mas, novas horas se passaram e nada do bandido. E a multidão, sabendo que fora caída num logro, voltou ao sítio. Todos voltaram e se preparavam para regressar a casa. Foi então que alguém deu falta do paralítico. Organizaram-se alguns grupos de procura e cerca de uma hora depois, o paralítico foi encontrado a uns quatro quilômetros do sítio, num emaranhado de uma toca de espinhos. Quando me contaram a história, esqueci de perguntar se ele havia ou não recuperado os movimentos. E nem o cordel, publicado logo depois e intitulado “O milagre do capitão Lampião em Água Branca” deu essa conclusão. 5. A terra onde meu pai nasceu era bem mais adentro do sertão de Pernambuco e tinha em Floresta o seu centro de influência. Terra árida, solo permeável às poucas chuvas, área de catinga, não dava pra nada. Mas como milagres sempre acontecem, aí pela década de 50 do século passado, alguém descobriu a sua verdadeira vocação agrícola: produção de maconha do mais alto teor, a melhor do Brasil, segundo voz geral. E como o sertanejo é, antes de tudo, inteligente, pegou financiamentos do Banco do Brasil para plantar arroz, mandioca e até trigo e, sabiamente, os aplicou no plantio da erva. Anos depois, safras depois, descobriu-se o escândalo, instalou-se o respectivo “Inquérito da mandioca” que, como é hábito e costume deste país, deu em nada. 6. Um pouco distante de Floresta, meu avô, no início do século passado, fundou uma vila que denominou Betânia, cumprindo promessa feita à sua mãe. Ele tinha uma atividade variada: professor, comerciante, criador de bodes. Muitos filhos, não sei quantos. Quando atingiu os catorze anos, meu pai teve um desentendimento com meu avô e desenbanderou mundo afora. É bom que esclareça que meu pai e, suponho, mais algum irmão, eram portadores da hoje chamada disfunção cerebral (?), antigamente denominada pmd. Não deu mais notícias e quando retornou foi com um certificado de reservista do Rio Grande do Sul. Como chegou lá eu não sei, mas ele – é preciso destacar – era extremamente inteligente, conversa boa e excelente vendedor. Com esses atributos se vai até Roma, quanto mais a Porto Alegre. (2). 7. Também não sei como meu pai chegou a Tabira e como namorou e casou com minha mãe, a pessoa mais calma, que nunca reclamou de nada e encarava tudo como melhor bom humor.



8. O primeiro episódio significativo desse casamento que vim a saber (deveria eu ter dois anos na época) foi a chegada de um circo em Tabira. Segundo presumo, vinha muito mal das pernas, pois nem palco possuía. Dizem que meu pai se apaixonou pela equilibrista/bailarina do circo. Mas sem o palco era impossível iniciar as funções. Mandar fazer um novo era demorado e caro. Meu pai então resolveu solucionar o problema. Quixotesco. Como a gente morava numa casa bem grande, ele, simplesmente, arrancou todas as portas dos quartos, com elas montou o palco e deu início às funções. Não satisfeito, quando encerradas as atividades artísticas em Tabira, meu pai acompanhou o circo durante dois meses sertão afora, quando resolveu voltar para casa. Não sei se com ou sem portas.


9. Ensinou-me a ler aos quatro anos e penso que, desde aquela época, decidiu que Tabira não era lugar para mim. Trabalhava muito como mascate e eu perdi a conta das vilas e cidades em que moramos. Era de uma inquietação sem conta.


10. Lembro-me do primeiro grande medo que tive. Em Tabira, por conta de um velho gerador, tínhamos luz das 8 às 9 da noite. Em uma dessas noites, quando meu pai tomava conta do escritório de uma algodoeira e estava preparando o pagamento do pessoal, comecei a brincar com as chaves do cofre, esqueci-as no bolso e fui para a rua brincar. Quando a luz deu sinal que ia apagar, foi que lembrei que precisava voltar para o escritório para devolvê-las. Mas onde é que estavam? Havia simplesmente perdido. Não recordo como tive a coragem de informar o meu pai. Só lembro de correr para um quarto escuro da casa e aguardar a inevitável surra. Lá para as tantas, a minha curiosidade venceu, fui à janela e deparei com o espetáculo luminoso de uma centena de velas: meu pai, com o seu inegável talento de mobilizador de massas, havia convocado umas cem pessoas para procurar as chaves. Que logo foram achadas para satisfação dele, que até do castigo esqueceu.


11. O grande acontecimento de Tabira, objeto de comentários durante anos, foi – sem dúvida – a queda de um teco-teco na vila. É verdade que vez por outra víamos no alto do céu uma sombra preta do tamanho de um passarinho que o povo dizia que era um avião. Mas, daquela vez, a sombra foi crescendo, fazendo barulho e adquirindo uma cor brilhante, somente um pouquinho mais alta que as casas. Encontrou a estrada, fez um pouso desajeitado, que estraçalhou uma asa e parou numa clareira. Toda população da vila, que nunca tinha visto um avião de perto, acorreu como em uma maratona para vê-lo. O fato logo se espalhou pelo povo dos sítios e povoados vizinhos, que para lá acorreu. Tabira nunca tinha visto tanta gente junta. Era uma procissão inacabável, dia e noite, durante uns oito dias quando chegaram as peças que permitiram o monomotor alçar novamente vôo, sob milhares de aplausos. 12. Meu pai não assistiu a esse festival. Antenado, embora sem dispor nem de um rádio (pois em Tabira só existia um), ele sabia que, com a guerra, seria grande a procura de cristais de rocha e já haviam localizado jazidas em Jeremoabo, no sertão da Bahia. Não teve dúvidas: adquiriu enxadas, picaretas, pás e outros equipamentos, equipou dois burros e lá se foi ele para a Bahia. Ainda lembro uma noite, ele saindo montado em um burro e o outro carregado, rumo a Jeremoabo. E, recordação permanente: eu contemplando as lágrimas de minha mãe caindo sobre as brasas do fogão.

13. Na Bahia, onde passou uns dois anos na mineração, deve ter ganhado algum dinheiro, pois vez por outra chegavam encomendas em casa e voltou até fumando charuto.


14. Mas o interessante é que ele voltou com a crença de que em Tabira também existia cristal de rocha. E dias depois da chegada, ei-lo armado com picareta fazendo buracos ao redor da cidade à procura do cristal. Foi muito buraco escavado até que ele desistisse da procura do tesouro, pois era o que faltava em Tabira.


15. Esgotada a busca do cristal, voltou a trabalhar no seu ramo de tecidos por algum tempo. Mas, logo que conseguiu uma folga, viajou para o Recife. Voltou e pediu a minha mãe para preparar roupas, toalhas e lençóis: havia conseguido me internar em uma colônia agrícola que os salesianos mantinham em Jaboatão, perto do Recife. Convenceu-os que ser padre era a minha vocação e era a vontade dele, e assim vendeu o seu peixe.


16. Não houve pedido, súplica, choro que o fizesse desistir do seu propósito. E eu, que nunca tinha ultrapassado os limites de Tabira, subi no caminhão com meu pai, rumo ao trem, em Sertânia. Eu nunca tinha visto um trem, mas me acomodei com meu pai em um banco. Até o trem parar em Arcoverde, próxima estação, quando meu pai saiu do trem, por alguns minutos, segundo ele, para falar com uma pessoa. Começaram a passar os minutos e eu – nove anos – comecei a ter medo. De repente, eu me perdia do meu pai. Sem dinheiro, sem saber para onde ia, nem como voltaria para casa e eis o pânico instalado. O trem apita, começa a sair e nada do meu pai chegar. E agora? O trem pegou velocidade, o desespero imobilizador me amarrou no banco e nada do velho. Nessa altura, me deu vontade de ir ao banheiro. Pelas portas dos vagões, eu divisei nada mais, nada menos que o meu pai numa alegre e demorada conversa com um conhecido. Saí do inferno e subi direto para o céu.



(1) Arreola: “El guardagujas”, in Confabulario Personal, pg.26. Esta é sem dúvida para mim, a mais ferina sátira sobre as administrações latino-americanas.


(2) Alguém disse que o meu conterrâneo e amigo Diógenes de Arruda Câmara (já falecido), quando era dirigente comunista na clandestinidade, viajou – sem intérprete – até à China, onde se entrevistou com Mao Tse-Tung.




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