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Revolta dos Pindoramas

Falei da inesquecível peleja entre o Pindorama (seleção brasileira de escritores) e o Autonama (seleção alemã), durante a Feira do Livro de Frankfurt, em 2013. Sem técnico, sem treino, e jogando contra um time com estrutura de profissional, não tivemos a menor chance: 9 x 1. Mas a história não acabou aí.


O projeto previa não apenas a publicação de nossos textos sobre futebol, em edição bilíngue, as leituras em público e o jogo. Haveria tudo isso em dose dupla. O primeiro encontro foi em Frankfurt, o segundo seria em São Paulo, no ano seguinte.

Pouco depois do massacre de Frankfurt, convocamos uma reunião com StefanieKastner, do Instituto Goethe, idealizadora e coordenadora do projeto. Estávamos à beira de um motim. A reunião foi para comunicar que não faríamos a segunda parte se não atendessem às nossas reivindicações.


Queríamos mudança já! Primeiro, reforços! Segundo, queríamos um técnico, de verdade. Por fim, exigíamos pelo menos um jogo-treino por mês, até o dia da partida.

Stefanie ouviu tudo, segurando o riso. Depois disse, quase séria:


“Mas gente, o importante são os textos, as leituras, é esse encontro entre escritores dos dois países. Criamos até um blog pra vocês. O jogo é detalhe.”


“Ah, é? E vocês combinaram com os alemães que o jogo é detalhe?”, falei, com total apoio dos companheiros escritores em luta!


Stefanie atendeu a todas as nossas solicitações, na reunião que entrou para a História como A revolta dos pindoramas.


O jogo aconteceu pouco antes da Copa. Traçamos uma estratégia de guerra, que começava com o grupo carioca levando os alemães para tomarem todas e mais algumas pelos bares do Rio, alguns dias antes da partida. Por pouco não acabam com o estoque de cerveja, caipirinha e feijoada da cidade.


Na véspera, já em São Paulo, foi a vez de o grupo paulista entrar em cena. O problema é que os alemães bebem muito e não ficam com barriga. Não sei se é um fenômeno que contempla apenas os escritores, o que sei é que eles beberam, comeram e fumaram (fumam demais, um cigarro atrás do outro), até de madrugada. O técnico deles foi encontrado dentro do elevador do hotel, dormindo sentado, na manhã do jogo.


Adiantou alguma coisa? Nada, os desgraçados parece que tinham passado a noite tomando chá e comendo biscoito de água e sal. Fininhos, cara boa, cheios de disposição. Odiáveis.


No vestiário, alguém do time deles veio perguntar se já poderiam entrar em campo. Dissemos que sim, entraríamos em seguida. Eram dez da manhã e fazia um sol de rachar. Pois ficamos uma hora no vestiário, jogando conversa fora. E eles lá, batendo bola, impacientes. A todo momento vinham nos perguntar: e aí? Já estamos indo, alguém respondia.


Começa o jogo. O Marcelo Moutinho anulava o artilheiro deles. O cartunista Junião (abrimos o leque, quadrinho e letra de música foram considerados literatura, por que não?), o jornalista Vladir Lemos, o poeta e craque nas horas vagas Bith dominavam o meio-campo. Otávio Jr. (nosso escritor e livreiro do morro do Alemão, olha a ironia) infernizava a defesa deles. O time todo estava jogando o fino. Final do primeiro tempo: 0 x 0.


Voltamos para o segundo e continuamos dominando. O problema é que o gol não saía, nem por decreto.


Até que, no último lance do jogo, recebi uma bola açucarada do Edvaldo Santana, perto da área deles. Dali mesmo chutei, rasteiro. A bola, sabemos, também tem os seus caprichos. Aquela bateu na trave, passou por trás do goleiro e caiu nos pés do José Luiz Tahan. Era tocar e correr para o abraço. Por azar do Pindorama, o Tahan isolou a gorduchinha na arquibancada.


Jogo encerrado, 0 x 0. Ainda em campo, o goleiro deles me abraçou e disse, com um risinho cínico: “Sorry, my friend, GodisGerman.”


Desculpe, meu amigo, Deus é alemão. Putz.



Escritor, roteirista e professor de literatura na UERJ. Escreveu 16 livros – entre romances, coletâneas de contos e crônicas, ensaios – e dois roteiros para cinema. É autor da “Trilogia do Rio de Janeiro”, composta pelos romances “O Campeonato”, “A Confissão” e “A Ilha”. Seu livro mais recente é um policial: “Um romance perigoso”. O editor deste blog considera “Passe de Letra”, de autoria de Flávio, um clássico sobre a literatura do futebol. Parte de sua obra foi publicada em outros países, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Portugal, Alemanha, Colômbia e México.



OBS.: Sugerimos ao leitor consultar o site de Flávio Carneiro, inspirado autor da literatura brasileira. Na guia ESTANTE aqui do Deixa Falar, indicamos alguns livros do Flávio.

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Deixa Falar: Criação e Edição de Raul Milliet Filho

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