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“VOCÊ É JUDEU?” (POBRE, MULHER, ANÃO...)

Atualizado: 2 de set. de 2021


O pior já começara.

(O ovo da serpente, de Ingmar Bergman, 1977)


As primeiras cenas desse filme são em branco e preto, foco incerto, possível evocação de multidões no clássico Metropolis, de Fritz Lang (1927)[1], e noutros exemplos do Expressionismo cinematográfico alemão – fragmentos da mesma natureza reaparecem perto de seu desfecho, como se o tempo narrativo não tivesse se passado. E uma das primeiras legendas diz para o espectador: “(...) quase todos perderam a fé no futuro e no presente”.

O ovo da serpente foi produzido na Alemanha, durante período em que Bergman preferiu viver fora de seu país de origem (Suécia), onde chegara a ser preso, em 1976, acusado de sonegar impostos, experiência humilhante que o fez sofrer um colapso nervoso.

Ambientada em Berlim durante a República de Weimar (1919/1933), nos dias de alucinada inflação, miséria, violência generalizada e medo que antecederam a tentativa hitlerista de golpe em 1923, a obra apresenta o trapezista circense Abel Rosenberg, judeu norte-americano residente naquela Alemanha, sem domínio da língua local, pobre, desempregado. Há um desenraizamento do personagem no país em grave crise, que preservava diferenças e privilégios sociais – quando chega ao prédio onde mora com o irmão, Max, uma espécie de pensão, Abel vê lances de uma comemoração marcada por abundância e restam, para ele e o mano, dois copos de cerveja oferecidos pela senhoria, Frau Hemse.

O personagem aparenta já estar bêbado na chegada (desequilíbrio corporal) e essa situação se agrava ao entrar no quarto: o irmão se suicidara, drama pessoal e familiar que resvala naquele quadro de carência, incerteza, pavor, outra imagem desfocada e assustadora. A visão do cadáver é um quadro dentro do quadro, visualmente similar ao desfecho de Rastros de ódio, de John Ford (v. comentário supra), define essa morte como importante elemento narrativo no mundo do filme.

O ingresso de Abel no ambiente interno também significou a introdução de cores no filme, com frequente predomínio de tons sépia.

Numa repartição policial, para tratar da morte do irmão, o homem é hostilizado por não falar alemão e estar desempregado. O inspetor Bauer pergunta se ele é judeu, Abel responde afirmativamente e questiona o motivo da indagação, sem ouvir qualquer justificativa. Depois, noutro lugar, escuta argumentos antissemitas divulgados pela Imprensa e lidos para ele pelo empresário circense Hollinger: os judeus são descritos como conspiradores e assassinos, inversão culpabilizadora feita naquele sombrio quadro de conspiração e assassinato.

No cabaré onde Manuela (ex-mulher de Max) trabalhava, Abel vê alguns trechos de números musicais que incluem anão e moças vestidas como soldados, cruza nos corredores com um travesti masculino (ambiguidade de gêneros num clima burlesco) e bebe. Personagens e situações lembram o filme Cabaret, de Bob Fosse (1972)[2], num registro diferenciado: em Fosse, o tom de espetáculo predomina, apesar do horror em andamento; Bergman mantém um ambiente de angústia e tensão mesmo nas cenas de música e certa comédia, o horror é permanentemente reiterado.

O rapaz comunica a morte do irmão a Manuela, há um sentimento de tristeza pela situação, que a jovem já previa. Entrega dinheiro que encontrara com Max à moça, sai daquele espaço e paga para outra mulher ficar com ele. Na rua, Abel cruza depois com grupo de espancadores – violência gratuita e disseminada -, espera por Manuela na porta de seu prédio, sentado na calçada, frio da noite. Entram, choram juntos, ela lhe oferece mais bebida contra o frio e a tristeza.

Nesse encontro, surge o nome de Hans Vergerus, conhecido de infância de Abel, com quem ele se encontrara há poucas horas no cabaré, precocemente grisalho (o presente/futuro já passado), identificado como filho de um homem de elite judiciária e, agora, adulto com aspecto de posição social privilegiada. O trapezista tem uma terrível lembrança desse antigo convívio: Vergerus abrira o corpo de um gato vivo em sua presença, Abel contemplara esse animal no ato da morte, transformada em espetáculo pelo outro. Há um clima de angústia nessa evocação, mesclado ao sentimento de não entender aquele presente que vivia, de estar perdido. Manuela trata o ex-cunhado com carinho, dá-lhe apoio nesse momento tão difícil.

Durante a permanência de Abel nos aposentos da cunhada, depois que a moça já se ausentara para trabalhar em seu segundo emprego, ele foi observado por uma idosa (Frau Pise), que reclama de dores físicas, senhoria naquele espaço. A mulher conversa com Abel, faz insinuações sobre o segundo trabalho de Manuela como atividade estranha ou suspeita, sugere ligações desse emprego com alguma igreja ou religião.

O Inspetor Bauer reaparece para pedir a Abel que veja cadáveres, vítimas de crimes misteriosos, faz perguntas sobre esses mortos; o trapezista entende que se tornou suspeito por ser judeu, tenta fugir daquele lugar angustiosamente prisional (portas, grades), situação que faz pensar no Kafka de O processo, filmado na década anterior por Orson Welles[3]. A morte de Max, a aparição de Vergerus, o clima de violência e espionagem, o antissemitismo e essas novas mortes começam a se articular como peças daquela sociedade em terrível crise, onde certas vidas humanas nada valem. Os olhares de Frau Pise e do policial Bauer fazem parte desse quebra-cabeças, têm por contrapartida o aspecto assustado, mas ainda indagador, de Abel. E aqueles olhos não se limitam ao registro, exercem poderes: Frau Pise expulsa o rapaz da pensão de Manuela, Bauer confisca o dinheiro de Max que estava com seu irmão. O cabaré onde Manuela atuava é invadido por grupo paramilitar, que espanca o gerente da casa e incendeia aquele espaço. A violência se desdobra em diferentes lugares e é promovida por diferentes sujeitos.

Manuela, seguida por um Abel oculto, vai a igreja católica e se confesssa, fala de seu sentimento de culpa em relação à morte de Max; o padre se comporta burocraticamente, concede e pede-lhe perdão, mundo com um Deus também incerto, que as ruínas no caminho do templo e o desmontar daquele meio social evidenciam. Mas resta um vínculo com a religiosidade – e com Vergerus, Ciências, instituições dominantes: Manuela consegue um aposento onde morar, pertencente à Clínica Santa Ana; ela e Abel obtêm um emprego nessa instituição, que também fornece alimento como parte do salário; moradia e trabalho foram acessíveis para ambos pela intermediação de Vergerus, apesar do perturbador mal-estar de Abel em relação a ele.

O portão da Clínica Santa Ana lembra visualmente a entrada de campos de concentração que o Nazismo construiria depois. Os aquivos onde Abel passou a trabalhar são acessíveis através de corredores sem fim, que ele não consegue percorrer sozinho, e evocam prisões (grades, portas) como, antes, a repartição policial onde Abel fora conduzido para identificar cadáveres. O trabalho de Manuela, numa espécie de cozinha, é marcado por disciplina extremamente violenta. Esse ambiente e a situação institucional fazem pensar no clássico expressionista O gabinete do Dr. Caligari, associando Ciência, disciplina e morte[4].

Aos poucos, o trapezista começa a entender que a clínica é lugar onde são realizados experimentos em seres humanos, que têm atitudes comportamentais alteradas através de drogas que ingerem, a própria Manuela começa a assumir posturas muito agressivas, sugerindo que ela e o cunhado – possivelmente, todos que ali trabalham - também são cobaias daqueles procedimentos.

Ao mesmo tempo que a violência se generaliza no conjunto da sociedade (tropas nas ruas, visão de uma mulher que sangra pela boca, moeda alemã sem valor real, falta de leite na cidade), Abel percebe a explosão de refletores ou algo semelhante no lugar onde morava, quebra parede e descobre câmeras que filmam seu cotidiano; Vergerus narra para ele o que estava ocorrendo, associa a morte de Max a essas experiências, toma cianureto e contempla a própria morte num espelho como espetáculo, numa estetização da violência que faz evocar os comentários de Walter Benjamin sobre Nazismo, Fascismo, Futurismo e guerra[5]. A lembrança infantil sobre a evisceração do gato, portanto, tivera um significado antecipatório e indicara o processo de transformar seres humanos em objetos de experimentos gratuitos, de clara animalização dos seres humanos, de desprezo pela vida e uso de saberes para destruição.

O desvendamento dessas terríveis práticas não significa um final feliz para a narração: Bauer continua a pretender controlar o destino de Abel, fala sobre possível novo contrato de trabalho para o trapezista, com o antissemita Hollinger, e a última notícia sobre o jovem norte-americano indica que ele desapareceu quando deveria ser escoltado pela polícia para seu novo destino – libertação ou morte?

Bergman filmou O ovo da serpente mais de 30 anos após a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial e o aparente fim do Nazismo. O mundo europeu, onde o filme foi feito e Bergman sofrera recente e humilhante acusação pública, parece outro em relação àquela Alemanha (e países similares) dos anos 20/40 do século XX.

Será mesmo diferente? Angústias existenciais e luta de classes parecem gritar não!

O poderoso Hans Vergerus sintetiza a morte planejada, a morte como espetáculo, a morte do outro como morte dele mesmo – morte da humanidade. E age mais ou menos dentro da Lei, tem vínculos familiares com um alto representante do Judiciário, é um homem da elite social naquele mundo.

O inspetor Bauer, que se revelara antissemita no começo do filme, zomba do Hitler (que também merece desprezo de Vergerus)[6] derrotado naquele 1923, em nome de suposta força da democracia alemã, democracia que permitira o florescimento do preconceito e potencial genocídio em seus quadros, todavia. Apesar da zombaria e do desprezo, Bauer e Vergerus estavam na mesma trincheira que o derrotado futuro ditador: administravam o horror sem o combater efetivamente, beneficiavam-se de seu nascimento.

O filme de Bergman nos lembra, de maneira dolorosa e percorrendo diferentes historicidades (do Cinema, do Capitalismo, do próprio diretor), que o Nazismo não surgiu de uma hora para outra nem de fonte única, não desaparecera também sem deixar rastros na sociedade, no Estado e em sua Justiça.

Em 1923, o pior já começara.

É possível que, em 1977 e até hoje, não tenha desaparecido completamente.


O ovo da serpente (Alemanha / EEUU). 1977. Direção: Ingmar Bergman. Roteiro: Ingmar Bergman. Música: Rolf Wilhelm. Produção: Dino de Laurentis. Fotografia: Sven Nykvisk. Elenco: David Carradine (Abel Rosenberg), Liv Ullmann (Manuela Rosenberg), Gert Fröbe (Inspetor Bauer) e Heinz Bennent (Hans Vergerus). 119 minutos. Colorido.

Leituras complementares


BJÖRKMAN, Stig. O cinema segundo Bergman - Entrevistas concedidas a Stig Björkman, Torsten Manns e Jonas Sima. Tradução de Lia Zatz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

EISNER, Lotte H. A tela demoníaca. Tradução de Lúcia Nagib. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

GAY, Peter. A República de Weimar. Tradução de Laura Lúcia da Costa Braga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do Fascismo. Tradução de Maria da Graça M. Macedo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

 

[1] LANG, Fritz. Metropolis (Alemanha). 1927. Direção: Fritz Lang. Roteiro: thea Von Harbor. Produção: Eric Pommer. Fotografia: Karl Freund e Günther Rittau. Elenco: Alfred Abel (Joh Fredersen), Brigitte Helm (Homem Máquina/Maria), Gustav Frölich (Freder) e Anny Hintzy (Mulher do Jardim Eterno). 153 minutos. Branco e preto.


[2] FOSSE, Bob. Cabaré (EEUU). 1972. Direção: Bob Fosse. Roteiro: Charlote Flemming e outros. Música: John Kander Fred Ebb. Produção: Cy Feuer e outros. Fotografia: Geofrey Unsworth. Elenco: Lisa Minelli (Sally Bowles), Michael York (Brian Roberts), Marisa Berenson (Natalia Landauer) e Joel Grey (Mestre de cerimônias). 124 minutos. Colorido.


[3] KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Cia. das Letras, 2011 (1ª ed.: 1925).

WELLES, Orson. O processo. (França / Itália / Alemanha). 1962. Direção: Orson Welles. Roteiro: Orson Welles. Música: Jean Ledrut e Tomaso Albinoni. Produção: Alexandre Salking. Fotografia: Edmond Richard. Elenco: Anthony Perkins (Joseph K.), Jeanne Moreau (Marika Burtner), Romy Schneider (Leni) e Akim Tamiroff (Bloch). 118 minutos. Branco e preto.


[4] WIENE, Robert. O gabinete do Dr. Caligari (Alemanha). 1920. Direção: Robert Wiene. Roteiro: Hans Janowitz e Karl Mayer. Fotografia: Willy Hammeister. Elenco: Werner Kraus (Dr. Caligari), Conrad Veidt (Cesare), Friedrich Feher (Francis), Lil Dagover (Jane), Hans Heinrich Von Twardowski (Allan) e Rudolf Lettinger (Dr. Olson). 71 minutos. Branco e preto.


[5] BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica Edição citada.


[6] A aristocrata alemã Mme. Bertholt (interpretada por Marlene Dietrich), no filme Julgamento em Nuremberg, de Stanley Kramer, expressou o desprezo de sua classe social por Hitler. Tal sentimento não foi suficiente para impedir os crimes nazistas; é possível que o desprezado fosse útil para serviços sujos que a aristocracia preferia não fazer diretamente, como se observa em Os deuses malditos, de Luchino Visconti.

KRAMER, Stanley. Julgamento em Nuremberg. (EEUU). 1961. Direção: Stanley Kramer. Roteiro: David Rintels e Joseph Persico. Música: Ernest Gold. Produção: Ian MacDougall e outros. Fotografia: Ernest Laszlo. Elenco: Spencer Tracy (Dan Haywood), Burt Lancaster (Ernst Janning), Richard Widmark (Ted Lawson), Marlene Dietrich (Mme. Bertholt), Maximilian Schell (Hans Rolfe), Judy Garland (Irene Hoffman), Montgmery Clift (Rudolph Peterson) e Ed Binns (Senador Burkette). 187 minutos. Branco e preto.

 

VISCONTI, Luchino. Os deuses malditos. (Itália / Alemanha). 1969. Direção: Luchino Visconti. Roteiro: Luchino Visconti e outros. Música: Maurice Jarre. Produção: Ever Haggiag e Alfred Levy. Fotografia: Pasqualino De Santis e Armando Nannuzzi. Elenco: Dirk Bogarde (Frederic Bruckmann), Baronesa Sophie Von Essenbeck (Ingrid Thulin), Hemut Griem (Aschenbach), Helmut Berger (Martin Von Essenbeck) e Florinda Bolkan (Olga). 167 minutos. Colorido.


Doutor em História, Professor titular na FFLCH/USP. Publicou individualmente, dentre outros livros, “Prazer e poder do Amigo da Onça” (Paz e Terra, 1989). Pesquisa caricaturas, quadrinhos, literatura e ensino de História. Organizou diversos livros, dentre os quais “Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré”. Nasceu em Natal, RN, e vive em São Paulo, SP.


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Deixa Falar: Criação e Edição de Raul Milliet Filho

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