por Flavio Pessoa
Celebrações do centenário
No momento em que escrevo essas linhas, minha impressão é de que estamos nos aproximando do sete de setembro mais tenso de nossa história...ou ao menos, de nossa jovem e ameaçada “democracia”. A lembrança deste quase bicentenário da Independência do Brasil está sendo marcada por uma provocação agressiva da extrema-direita, com armas em punho, e ameaças à constituição e ao estado de direito. Com o início das mobilizações de grupos de oposição, o clima nunca esteve tão pesado num país que está no limite, em meio a pandemia mais letal em um século e uma sucessão de denúncias de crimes gravíssimos envolvendo esferas do governo federal, que é o mais deplorável desde a ditadura.
Mas o que me parece mais inusitado é o desinteresse demonstrado pelo governo em relação às celebrações do bicentenário da Independência. Com todo o falso discurso patriótico que ajudou a eleger este governo, seria natural que houvesse uma programação, uma agenda de solenidades, atrações artísticas e culturais, (ao menos dentro daquilo que eles consideram cultura). Celebrações como essa, são oportunidades que qualquer nação aproveita para projetar positivamente a imagem do país e a do próprio governo, além de contribuir para o sentimento de unidade nacional. Pois estamos a um ano do bicentenário da independência e não se ouviu do Alvorada, da SECOM, da Secretaria de Cultura, de nenhum órgão ou ministério ligado ao Governo Federal, nem uma frase sobre as celebrações de 2022.
Voltando cem anos no tempo, as celebrações de 1922 já mobilizavam a imprensa desde 1917, ainda que cobrando esforços do governo, que de fato, deixaria para o sucessor começar as obras. O centro do Rio de Janeiro passaria por severas reformas, que envolveram a derrubada definitiva do Morro do Castelo e a construção da grande Exposição Internacional[1], de arte, cultura, comércio, ciência e tecnologia. Era formada por suntuosos pavilhões ocupados por diferentes nações. além das competições internacionais poliesportivas, que exigiram reformas de suas praças de espetáculo. As celebrações do centenário foram de enorme importância para o governo de Epitácio Pessoa, em um outro período de grande turbulência política, onde buscou promover a imagem de um país unido, moderno e civilizado.
A dissertação da historiadora Thais Sant’anna[2] focaliza a Exposição Internacional, analisando-a no contexto do campo de disputa em torno da modernidade brasileira, no alvorecer da década de 1920. À meia-noite do dia 06 para o dia 07 de setembro de 1922, trinta navios, entre brasileiros e estrangeiros, e mais oito fortalezas, saudaram o centenário da independência, com uma salva de tiros. Às 16 horas do dia 07, o Presidente da República declarava a exposição oficialmente aberta, com um discurso transmitido por meio dos serviços de rádio telefonia, e de telefone auto-falante, para o recinto da exposição, e ainda para Niterói, Petrópolis e São Paulo. À noite, a programação contava com uma encenação da ópera O Guarany, de Carlos Gomes, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, também transmitidas pelo sistema de auto-falantes. À noite do dia 07 de setembro, o órgão da comissão organizadora celebrava o estrondoso sucesso do evento, informando que a Exposição teria recebido, naquele primeiro dia, mais de 200 mil pessoas (SANT’ANNA, 2008, p.92).
O centenário na caricatura
É aqui que convido o leitor a visitar o ano 1921, através das páginas da revista Careta (1908-1960), disponíveis na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional[3]. É lá vamos encontrar um discurso alternativo de grande potência. Através da irreverência humorística, cartunistas como J.Carlos e Belmonte vão oferecer ao leitor uma perspectiva crítica que apontava para os aspectos negativos, questionando a imagem de progresso, modernidade e civilidade que o Estado buscava projetar. A começar pela figura alegórica que representava o centenário, utilizada em inúmeras charges entre 1920 e 1922. Um senhor de idade bem avançada, alto e magro, longas barbas brancas, que andava seminu. A cartola na cabeça e o sapato com polainas nos pés, dois símbolos inequívocos da aristocracia, contrastava com a nudez do dorso e das pernas. No resto do corpo, tinha nada mais do que uma espécie de fralda ou uma samba-canção a lhe cobrir as vergonhas.
Na charge de J.Carlos, de dois de abril de 1921 (Figura 01) mostra o velho do centenário estagnado e melancólico, diante da pilha de projetos, representados por imensos rolos de papel amarrados por barbantes, identificados como “Morro do Castelo” e “Avenida da Independência”. Uma aranha está tecendo sua teia, que atravessa o caminho entre os dois rolos que estão em primeiro plano. Na legenda, o desfecho sarcástico de J.Carlos, dá o tom do discurso: “Começam as obras em vários pontos da cidade.”
É em momentos de grandes efemérides que uma nação se volta para o pensamento social, para revisionismos e reflexões sobre nossas características, sobre os traços sociais e culturais do país. Nessa mesma época, estava em curso uma pesquisa de recenseamento, o que gerou aos cartunistas, algumas oportunidades de associação com as expectativas em torno do centenário da independência. Na charge Quantos somos?, do dia 22 de maio de 1920, (figura 79) o velho centenário é interpelado por um funcionário encarregado da pesquisa de recenseamento. Está muito bem trajado, em contraste com a seminudez habitual do idoso, que em vez da bengala, segura um cajado que lhe confere um ar de pastor ou profeta.
Seu comentário é um reforço à crítica que recai, como sempre, à população. Pois quando comenta, resignado, que “A mim pouco importa a quantidade. Eu preferia conhecer a qualidade”, está justamente reforçando o senso comum, que condena a população de forma generalizada. Estende à toda a população, a pecha de desqualificada. Se na imensa quantidade que ele despreza, o velho centenário não consegue encontrar a qualidade, pesa sobre a população a culpa pelo atraso do país[4]. As representações pejorativas do povo brasileiro é a hipótese central da tese que defendi em 26 de março deste ano, onde procuro compreender como os discursos humorísticos da caricatura contribuem para as disputas simbólicas em torno da identidade nacional brasileira num momento em que o assunto era amplamente debatido nos jornais, nas revistas literárias e populares.
Justamente quando começa a se aproximar a data em que se celebraria o centenário da Independência, o personagem Jeca-Tatu, eternizado na literatura por Monteiro Lobato, ganha forma no traço dos maiores expoentes da caricatura brasileira. A figura do camponês brasileiro, com toda a sua humildade, boca desfalcada de dentes, descalço, chapéu de palha à cabeça, passa a ser cada vez mais lembrado para representar o povo brasileiro em charges políticas. O humor aqui cumpre seu papel de retirar a sobriedade da festa e dos discursos oficiais. Quando representa o povo brasileiro por um personagem marginalizado, humilde, de vida dura e precária, sem instrução, ele expõe aquilo que fragiliza o discurso oficial, que põe abaixo os cenários de fachadas suntuosas e expõe os bastidores deste teatro da modernidade, orquestrado pelo Estado.
Na segunda edição da Careta do ano do centenário, publicada em 14 de janeiro, a charge destacada (Figura 03) é uma das mais icônicas deste momento. Sob o sarcástico título “um ano de regozijo”, a charge de J.Carlos nos mostra a figura típica do caipira, refestelado numa poltrona, visto pelas costas, de modo que o leitor possa ler a página do jornal que o personagem observa. De seu rosto, só vemos uma nesga de seu perfil, a bochecha, a ponta do nariz, boca semiaberta e uma mecha de cabelo que escapa do chapéu e pende à sua frente. Às costas, vemos o inseparável chapéu de palha de aba longa e um pedaço do lenço atado ao pescoço. A manga dobrada desnuda o antebraço cabeludo, que segura uma das pontas do jornal.
Ao pé da poltrona, descansa o pé nu do caipira, enfiado em um chinelo de dedo, calçado reconhecido como um ícone de pobreza. Vemos ainda um pedaço da bainha da calça, virada para fora como requer a iconografia mais recorrente do personagem. Na extremidade inferior esquerda da imagem, observa-se ainda um cinzeiro vazio no chão e rodeado de guimbas de cigarro. O detalhe sugere, talvez, uma educação limitada do personagem, que talvez desconheça a utilidade deste utensílio. Na página que o caipira observa, podemos ler, de cabeça pra baixo, o seguinte anúncio, em letras garrafais, dividida em 5 linhas: “SETEMBRO DE 1922; CEM ANOS DE INDEPENDÊNCIA!” Abaixo da imagem, a fala do personagem nos parece um tanto redundante: _ “É pena eu não saber ler.”
O breve texto da legenda é atribuído ao caipira, mas soa como um comentário do próprio cartunista. Diante de tamanho investimento do Estado, a garantir tanta pompa e requinte, reservados aos festejos oficiais do centenário, é pena que permaneça analfabeta, parte considerável de nossa população. J. Carlos ilustra aqui um povo que lamenta a própria sorte diante de uma república mais interessada na falsa projeção de uma imagem de país, do que nas carências de sua própria população.
Esta charge é repleta de símbolos significativos para analisarmos a crítica mais recorrente expressa pela caricatura brasileira em torno das celebrações do centenário. Acentuando a dificuldade no reconhecimento das letras e números pelo homem do campo, sem instrução básica, aqui representando o povo brasileiro, J. Carlos aproveita a oportunidade para lançar mão de uma metáfora ainda mais sutil. O cartunista parece sugerir que o analfabetismo da população coloca de cabeça pra baixo, as celebrações do centenário, como todo o esforço do Estado em projetar uma imagem de um país moderno e civilizado. Sem instrução, o caipira mantém-se completamente alheio às celebrações, que parecem não lhe dizer respeito.
A ideia iconoclasta de virar símbolos de cabeça para baixo remete às linguagens usuais do humor, e das manifestações públicas e populares, em atos de protesto. Virar algo de cabeça pra baixo é uma metáfora que carrega o sentido de expor ao ridículo. Na caricatura, o Centenário da Independência está invertido, fora do lugar, ridículo.
Exatamente um mês depois da inauguração da Exposição Internacional do Centenário da Independência, a revista Careta ainda dedicava muitas de suas páginas e charges ao assunto. Na charge selecionada (Figura 04), Belmonte elegia o Jeca-Tatu como anfitrião da festa. Posava entre Marcelo Torcuato de Alvear, que dali a cinco dias seria empossado presidente da Argentina, e o então presidente de Portugal, António José de Almeida. Muito pouco à vontade no traje à rigor, trazia o colarinho frouxo no pescoço e a gravata amarrada à guisa de lenço. O caipira ensaiava um sorriso amarelo e surpreso, que contrastava com a expressão sisuda dos dois estadistas, mais altos e imponentes do que ele. Ao fundo, percebemos a imponência dos pavilhões e luminárias. Pairando no ar, em primeiro plano, acima da cabeça dos estadistas estrangeiros, o brasão de seus respectivos países ajudam o leitor menos informado, a identificar os caricaturados. Ao pé da charge, vemos uma legenda, sugerindo a fala do representante do povo brasileiro: “_Imaginem só, se eu não fosse anarfabeto!”
Sobre o estadista português, Thaís Sant’anna nos informa que a visita de Antônio José de Almeida teria sido um dos dias mais movimentados do evento, atraindo uma multidão que se aglomerou para aclamar e ouvir o discurso do presidente lusitano, que recebera ainda diversas homenagens de ministros e deputados brasileiros. O entusiasmo e euforia com que presidentes e monarcas estrangeiros, principalmente vindos do velho Continente, eram sempre recebidos no Brasil, diz muito sobre a reverência do brasileiro às nações do grupo formado por lideranças econômicas mundiais (SANT’ANNA, 2008, p.94-95).
Dessa forma, ganha novas camadas de percepção, a representação sóbria e altiva, que Belmonte faz dos presidentes estrangeiros, para servir de contraponto à representação ridicularizada do representante brasileiro. A charge não representava “o brasileiro” como o estadista solene, mas como o camponês humilde e ignorante; impressionado por ter alcançado tal patamar. Figurando em trajes de gala, entre dois presidentes, em frente a um cenário espetacular, assume o contraponto do discurso oficial. Tira sarro da obsessão civilizatória e colonizada do Estado, e seus esforços em enaltecer e se espelhar, na tradição e cultura europeia. A charge debocha de um Brasil oficial, aquele que se quer projetar, que nessa imagem, aparece no fundo, na silhueta, e que ainda olha com desprezo para o povo.
O que Belmonte traz para o primeiro plano é justamente o que o governo procura varrer pra debaixo do tapete: o ranço de um país rural, de economia agrária e dependente, com uma população pobre e sem instrução. Não à toa, o Jeca frisa constantemente nessas e em outras charges, a sua condição de analfabeto. Belmonte também o caracteriza bem mais baixo e mais franzino que os outros dois, e sublinha a sua inadequação, ao traje que veste. Sua casaca está aberta e o desajustado lenço no pescoço destoa do restante do traje. Para piorar a situação, é o único que sorri, abestalhado, e. com isso, expõe seu dente solitário na boca vazia.
Esta charge, por fim, é a que reúne os elementos mais icônicos da principal crítica, que se repete com o uso do personagem ao longo dos anos, e pelo traço dos mais diversos cartunistas. É o caipira, servindo como o contraponto crítico, às celebrações e à projeção de modernização e civilidade. É a lembrança da predominância rural, atrasada e economicamente dependente, de um país que, celebrando sua independência política, quis forjar a imagem de uma nação moderna. Esta ilustração é, portanto, o ícone maior da crítica caricatural a todo o movimento de celebração em torno do centenário.
A figura do povo como um personagem fixo acaba não encontrando mais lugar no século XXI, marcado pelas múltiplas identidades culturais. Mas é comum ouvirmos ainda hoje, curiosamente à direita e à esquerda, discursos que condenam a população pelas mazelas sociais do Brasil. Consolidou-se no país o mito do povo emotivo que não sabe votar, que só se mobiliza para festas, Macunaíma preguiçoso e sem caráter, facilmente corruptível, o vira-latas, já criticado por Nelson Rodrigues. O argumento de que é o povo que elege o político que não o representa, é superficial. Procura encerrar uma discussão muito mais complexa. O discurso já se fragiliza pela questão que deveria ser a primeira e é a mais difícil de se responder: quem é o povo brasileiro, uma das maiores e mais diversificadas populações do mundo? Sobre as representações do povo na caricatura, há muito mais a se investigar e muito assunto para futuros artigos.
De volta do nosso passeio pelo centenário, voltamos ao presente, às vésperas do bicentenário, cujas celebrações, se houver, serão esforços e iniciativas independentes, de fundações e instituições culturais do país. Tanto melhor, uma vez que a versão mais sórdida e canalha do Jeca-Tatu é que está no poder. Se nos livremos deste fardo, de preferência bem antes de setembro de 2022, já seria motivo de sobra para comemorarmos do jeito que o brasileiro mais gosta: um verdadeiro carnaval!
[1] Desde 1851, em Londres, iniciou-se a era das grandes exposições internacionais, para gerar oportunidades de comércio, e promover a modernidade, a engenharia, a ciência, tecnologia, arte, design, arquitetura. Sobre a Exposição de 1922, ver Livro de ouro do centenário da independência do Brasil e da Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Edições do Anuário do Brasil (Almanak Laemmert), 1922. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/bndigital0447/bndigital0447.pdf
[2] SANT’ANNA, Thaís Rezende da Silva de Sá. A Exposição Internacional do Centenário da Independência: modernidade e política no Rio de Janeiro do início dos anos 1920. 166 fls. 2008. Dissertação (mestrado em história) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/281848/1/Sant%27Ana_ThaisRezendedaSilvade_M.pdf [3] http://memoria.bn.br/DOCREADER/DOCREADER.ASPX?BIB=083712&pagfis=1
[4] PESSOA, Flavio. Jeca-Tatu a rigor: Representações do povo na Careta e n’O Malho: identidade nacional na Primeira República (1902-1929). 2021, 476f. Tese (doutorado em artes visuais)Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Universidade Federal do Rio de janeiro, Rio de Janeiro, 2021
Flavio Pessoa é formado em design gráfico, ilustrador do ramo editorial. Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV, da Escola de Belas Artes (2021), onde defendeu a tese "Jeca-Tatu a rigor: Representações do povo na Careta e n’O Malho: identidade nacional na Primeira República (1902-1929)." É mestre em História Comparada pelo PPGHC, IFCS (2013) com tese sobre as charges de futebol de Lorenzo Molas e Henfil para o Jornal dos Sports.Em 2001 concluiu a especialização em história da arte e da arquitetura no Brasil, pela PUC, com monografia sobre o ilustrador Roberto Rodrigues
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