Em 1953 a Escola de Samba vencedora do Carnaval do Rio de Janeiro foi a Portela, que alcançou a nota máxima em todos os quesitos, pelo que este ficou conhecido, até os dias de hoje, como o Carnaval dos 400 pontos.

Este feito da Águia de Oswaldo Cruz envolve um episódio insólito: um áspero desentendimento entre o patrono da Escola, o inesquecível Natal, e o presidente Armando Santos, responsável pela execução dos trabalhos para o Carnaval.
Poucos dias antes do desfile em visita ao barracão, Natal criticou asperamente o que vira, dizendo:
– Porra, sêo Armando, que m… de Carnaval é esse?

Anunciado o resultado final, Natal, sem caber em si de contente, dirigiu-se a Sêo Armando dizendo:
– Parabéns Armando, que Carnaval maravilhoso!
Ao que imediatamente recebeu o troco irônico do grande herói da vitória:
– Pois é Natal: lembra que você disse que era uma m…?
1. Antecedentes
A fundação do Império Serrano, em 1947, foi motivada pelo descontentamento de sambistas do morro da Serrinha devido à forma autoritária com que o então presidente Alfredo Costa (futuro sogro da compositora Dona Yvonne Lara da Costa) dirigia a principal escola existente na localidade, o Prazer da Serrinha.
O samba de autoria de Nilton Campolino e Sebastião Molequinho, intitulado Menino de 47, tão venerado pela comunidade imperiana celebra este fato: Seus primeiros versos são os seguintes:
Menino de 47, De ti ninguém esquece Serrinha, Congonha, Tamarineira Nasceu o Império Serrano O reizinho de Madureira…
A nova Escola veio logo se ombrear com as tradicionais Portela, Mangueira e Salgueiro, como as grandes agremiações da época.
Logo em 1948, seu primeiro ano de existência, o Império Serrano sagrou-se campeão com o enredo Antônio Castro Alves.
Entre 1949 e 1951 aconteceram dois desfiles, organizados respectivamente por entidades diferentes, a FBES - Federação Brasileira das Escolas de Samba e a UGES – União Geral das Escolas de Samba.
Filiada à FBES o Império Serrano sagrou-se novamente campeão nos três anos consecutivos. O tetra-campeonato despertou reações das demais co-irmãs que atribuíram o sucesso do Império à proteção do jornalista Irênio Salgado, presidente da FBES, simpatizante declarado do Império Serrano.
Registre-se que nesses três anos Portela e Mangueira desfilaram pela UGES, sagrando-se a primeira campeã em 1949 e 1950 e a Portela em 1951.
2. O Carnaval de 1952
Em 1952 finalmente ocorreu a união entre as duas entidades – FBES e UGES – o que provocou grande expectativa pelo concurso deste ano, no qual finalmente todas as Escolas competiriam entre si. Seria o grande tira-teima!
Para acomodar os jurados, foi montado um palanque na Avenida Presidente Vargas, próximo à esquina com a Avenida Rio Branco. Como não havia cobertura, em face da chuva constante que caiu na hora do desfile, os jurados abandonaram o local sem efetuar o julgamento de todas as 25 escolas e em conseqûencia o resultado do desfile foi anulado.
Todavia, a anulação foi atribuída a uma manobra do Império Serrano, para evitar a provável derrota. Abaixo a letra do samba com que o Império se apresentou:
HOMENAGEM À MEDICINA BRASILEIRA O ilustre professor Doutor Osvaldo Cruz Grande pesquisador Carlos Chagas, Miguel Couto Vultos de glórias mil Na Medicina do Brasil Laureano, Caiado de Castro Miguel Couto e outros mais Ana Néri, corajosa enfermeira A heroína brasileira
Diga-se que neste ano de 1952 a Portela veio, pela derradeira vez, com um lindo samba de autoria de Manacéia intitulado Brasil de Ontem, cuja letra dizia:
BRASIL DE ONTEM
Brasil já não és mais aquele
Brasil que o tempo levou (o tempo levou... levou)
Brasil antigo de escravo e senhor (de escravo e senhor... senhor)
Antigamente o sofrimento era demais (era demais... demais)
Tronco e pelourinho não existem mais
Antigamente, na cidade
A carruagem era o luxo da mocidade
As grandes damas, todas faceiras
Os escravos carregavam na liteira
O Carnaval idealizado por Lino Manuel dos Reis e sob a presidência do grande sambista e dirigente Armando Santos mostrou grande originalidade. O casal de Mestre-sale e Porta-bandeira entrou no desfile carregado em uma liteira, mencionada na letra do samba, saltando da mesma na frente da Comissão Julgadora para se apresentar, recebendo palmas entusiásticas do público presente.
3. O Carnaval de 1953
Mal acabou a polêmica anulação do resultado de 1952, os sambistas começaram a fazer planos para o carnaval seguinte. Após três anos com estas escolas filiadas a entidades diferentes, o confronto entre Portela, Mangueira e Império Serrano tinha ido por água abaixo. Agora, o tão esperado duelo era inevitável. Finalmente, seria possível ver na avenida quem estava com a razão, quem seria a melhor escola da cidade.
Para o sambista, a espera pelo carnaval nunca foi tão angustiante. Durante todo o ano, as provocações mútuas entre portelenses e imperianos ganharam as ruas de Madureira. A anulação gerou desdobramentos e muito o que falar e cantar.
O tablado foi novamente montado no mesmo local do ano anterior, na Avenida Presidente Vargas, próximo à esquina com a Avenida Rio Branco, agora com uma pequena cobertura que protegia a comissão julgadora em caso de chuva. Medida providencial, pois mais uma vez o domingo de carnaval aconteceria debaixo d'água.
Com uma vontade de vencer que impressionava, a Portela fazia seu esquenta” cantando o samba de quadra composto pelo sambista Maneco, que fazia referência ao polêmico carnaval do ano anterior ironizando a decisão do Império Serrano favorável à anulação do desfile, cuja letra dizia:
Não foi Portela
Que anulou
Não foi Mangueira
Também não foi, não senhor
Essa escola
Pra vocês é um mistério
Não digo o nome
Deixo isso a seu critério
Mais uma chance eu vou lhe dar
Essa escola fica perto de Madureira
Saiu representando em 52
Ana Néri, a corajosa enfermeira
Vale a pena recordar alguns detalhes do Carnaval Portelense, novamente dirigido pelo grande Armando Santos e que levou o título de Seis Datas Magnas.
Foi neste Carnaval a estréia do grande compositor portelense Antônio Candeia Filho, então com 17 anos incompletos, compondo em parceria com Altair Prego (Althayr Marinho), seu companheiro da famosa Turma do Muro que se reunia na Rua Carolina Machado, em frente ao muro da Central do Brasil, de onde surgiu a sua nominata.
Entre os componentes da Turma figuravam os futuros compositores Bubu, Picolino, Casquinha, Valdir 59 e Euclenes, que iriam se notablizar por alguns dos mais belos sambas da gloriosa Escola de Oswaldo Cruz e outros portelenses como Mazinho do Nascimento e Siloca, este irmão de Valdir 59.
A letra do samba era a seguinte:
SEIS DATAS MAGNAS
Foi Tiradentes o Inconfidente
e foi condenado à morte
trinta anos depois o Brasil tornou-se independente
era o ideal de formar um país livre e forte
Independência ou morte
D. Pedro proferiu
mais uma nação livre era o Brasil.
Foi em 1865 que a história nos traz
Riachuelo e Tuiuti foram duas grandes vitórias reais
foram os marechais Deodoro e Floriano e outros vultos mais
que proclamaram a República e tantos anos após foram criados
Hinos da Pátria amada
nossa bandeira foi aclamada
pelo mundo todo foi desfraldada.
Para ouvir na interpretação de Monarco e Velha Guarda:
Sêo Lino planejou apresentar seis grandes painéis pintados em cartolina alusivos às datas a que se referia o enredo e que eram:
1ª - Tiradentes (21 de abril de 1792)
2ª - Grito do Ipiranga (7 de setembro de 1822)
3º - Batalha do Tuiuti (24 de maio de 1865)
4ª - Batalha do Riachuelo (11 de julho de 1865)
5ª - Proclamação da República (15 de Novembro de 1889)
6ª - Dia da Bandeira (19 de novembro de 1889)
Os painéis foram valorizados pelo emprego de baterias de automóvel para permitir a iluminação dos mesmos, graças à tenacidade de Sêo Armando que os conseguiu, na véspera do desfile, com um eletricista amigo conhecido pela alcunha de Apagado que trabalhava nas cercanias do Cemitério de Inhaúma.
A Portela entrou batendo seus pés firmes no tablado, fazendo o barulho da madeira se misturar ao som do canto das pastoras. O samba foi abraçado pelos portelenses e empolgou o público que assistia ao maior desfile de todos os tempos.
Dodô rodopiava empolgada, mestre Betinho segurava a batida de sua bateria, a magia dos grandes carnavais estava presente.
Em frente ao palanque da comissão julgadora, a Portela fez o hasteamento da bandeira nacional. Um momento que emocionou a todos que o presenciaram. A Portela literalmente levantara a avenida e deixou o tablado ovacionada, com a certeza do dever cumprido. O maior desfile de todos os tempos, até aquele momento, mobilizava as expectativas de imperianos, mangueirenses e portelenses, ansiosos pela divulgação do resultado oficial. Todos, contudo, não negavam o favoritismo da azul-e-branco, que fez um desfile reconhecidamente magistral.
Quando os envelopes foram abertos, a Portela sagrava-se vencedora do grande confronto, obtendo nota máxima em todos os quesitos!
Eis a classificação final das 10 primeiras Escolas de um total de 24 qgremiações:
1º Portela – Seis Datas Magnas - 400 pontos
2º Império Serrano – O Último Baile da Corte Imperial -396 pontos
3º Mangueira - Unidade do Brasil - 341 pontos
4º Aprendizes de Lucas – Exaltação a Recife - 286 pontos
5º Unidos da Tijuca – Caxias, Barroso e Santos Dumont - 262 pontos
6º Unidos do Salgueiro – Heróis da Batalha de Guararapes - 220 pontos
7º Filhos do Deserto – Incentivo à Cultura do Trigo – 209 pontos
8º Unidos da Capela – As Quatro Estações do Ano – 189 pontos
9º Os Três Mosqueteiros – Aquarela do Brasil – 186 pontos
10º Paz e Amor – Rio de Janeiro, Jóia Universal – 184 pontos
Era a primeira vez na história que tal feito acontecia. A comissão julgadora reconheceu o desfile perfeito e irrepreensível da Portela, e as ruas de Madureira, finalmente, puderam ser coloridas pelo azul e pelo branco. Era o 11ª título da Portela. Para muitos, o maior desfile da história da Portela e do carnaval carioca.
E ficou registrado nos anais da Portela o confronto descrito na apresentação desse texto entre Natalino José do Nascimento, o grande Natal e o Presidente Armando Santos, compositor integrante da primeira formação da Velha Guarda Show da Portela e que exercia a profissão de provador de café numa exportadora da praça do Rio de Janeiro.
* Carlos Monte: Engenheiro Mecânico com especialização em Engenharia Econômica pela UFRJ. Secretário Executivo do Ministério da Previdência e Assistência Social. Autor do livro “A Velha Guarda da Portela”, em parceria com João Baptista de Medeiros Vargens, escola da qual foi Diretor Cultural até 2015.
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